28 de julho de 2006

A aldeia da porta vermelha

Foi na altura em que pensei que a cidade nada tinha de novo para me oferecer que decidi correr o mundo.

Esvaziei os armários para dentro de malas - casas temporárias de toda a minha estória. Tinha acumulado tanta coisa desde que pousara na cidade havia já muitos anos (séculos?). E, no entanto, de nada me lembrava que justificasse a prolongada permanência naquele lugar. Por isso, despejei as malas no chão de madeira velha. Numa mochila, uma camisa, umas calças e este caderno, também ele gasto de repetido uso. E uma pequena mala vazia, esperando que nesta nova jornada se encha de novas memórias a imaginar. E, assim, de curta bagagem a tiracolo, parti.

O combóio levou-me até uma pequena terra. O seu nome não constava nos mapas - em muitos, nem sequer um minúsculo ponto marcava a sua exacta localização. Um calor abafado adequava-se às suas ruas quase desertas. Ao longe, um velho passeia o seu cão. Dono e animal, impávidos e imperturbados pelo mundo "lá fora", são parte de uma mobília que perdura - penso eu - ainda antes do combóio chegar pela primeira vez àquele lugar. Hesito em lhe(s) dirigir a palavra. Não o faço.

Procuro onde pernoitar. no fundo de uma rua erma, uma porta vermelha entreaberta convida à entrada. Bato, anunciando a minha presença - de lá de dentro, uma voz: «entre, estávamos à sua espera há já algum tempo». Mas como, se não conhecia ninguém naquela terra perdida no mapa? Uma velha de avental e rosto de avó respondeu enquanto abria a porta, convidando-me à entrada: «Nunca sai aqui ninguém do combóio - mas você saiu. E como não está nenhuma outra porta aberta, logo teria de vir dar aqui». Entrei.

Perguntou-me o que me tinha levado até ali, que procurava eu. Disse-lhe que não sabia, tinha apercebido apenas que não poderia ficar no mesmo lugar. Perguntou-me como era a vida na grande cidade - disse-lhe que era exactamente igual àquela pequena terra, com muitas portas fechadas, apenas com casas maiores. Contou-me que nunca dali tinha saído. O seu mundo era aquela porta vermelha, perdida no meio e tantas outras de cores mais ou menos esbatidas. Perguntei-lhe pelos outros habitantes. «Não existe mais ninguém, só eu e mais um vizinho e o seu cão».

Depois de um farto lanche, decidi passear pela aldeia. Reparei, então, que as portas das restantes casas não estavam fechadas, mas apenas encostadas. Aventurei-me a entrar numa delas. Lá dentro parecia que nunca tinha deixado de ser habitada. «É para que possam sempre voltar a ser usadas por quem esteja de passagem, ou decida ficar». Pediu-me para ficar uns dias, que lhe fizesse companhia. Aceitei - tinha ali achado uma pertença que esquecera na cidade. Escolhi uma casa junto ao apeadeiro do combóio, para nunca perder a ideia do mundo que continuava noutras paragens. Acendi a lareira e, de manta nos pés, escrevi no meu caderno: novamente, as minhas asas vermelhas fecham-se em repouso; olho pela janela e a noite convida a sonos repousados e memórias de paragens longínquas. Sei que ainda não encontrei um pouso definitivo - provavelmente, nem o busco sequer - mas sinto uma união com este lugar, como se visse nele uma familiaridade que tinha já perdido. Muitos combóios irão passar diante da minha "nova" porta, mas a todos direi adeus. Estou novamente em casa.

R.

4 comentários:

Nuno Guronsan disse...

Há muito tempo que já não bato na "porta vermelha" que sempre me espera na terra dos meus pais. Apesar de tudo, tenho saudades. Sinto que preciso de lá voltar, talvez, nem que seja, para abrandar o meu ritmo. Sentir outras sensações, muito parecidas com aquelas que aqui descreves.

Bonito texto. O anjo volta a deixar a sua marca ;)

Anónimo disse...

as minhas asas azuis têm os movimentos presos. tenho medo de não conseguir levantar voo. o olhar está desinquieto a procurar um caminho, preciso sair daqui, sinto-me acorrentada...
quero perder-me no céu.

Mel_ancólica...

(ler-te deixou-me a respirar melhor, preencheu a tua ausência em mim)

angel_of _dust disse...

nuno: sabes, estou sempre à procura do "meu lugar" - (in)felizmente ainda não percebi se é apenas físico, ou se é algo de mais interior, emocional...

... voltei; já precisava

angel_of _dust disse...

mel: as tuas asas azuis terão sempre lugar na minha "ilha"... há muito que não a procuras, tenho saudade. sabes onde me encontrar, com as minhas asas vermelhas sempre abertas para ti ;)