20 de janeiro de 2007

Lembras-te de mim?

Lembras-te de mim? Daqueles dias que passávamos juntos - imaginando mudar o mundo de uma só penada. Lembras-te de mim? Eu era aquele rapaz que ficava sempre no fundo da sala, a mochila cheia daqueles jornais revolucionários, e com os panfletos já prontos a distribuir.

Lembras-te de nós? Lembras-te de como me disseste que enfrentarias os teus pais, que não irias seguir aquele curso de medicina, e que sim, que me acompanharias na luta política? Talvez não te lembres já, mas desconfiei da tua adesão à causa, dos teus motivos. Tudo bem que me agradava ter alguém como tu interessada em alguém como eu. Tudo bem que nem todos teríamos o mesmo empenho, e que quantos mais fossemos mais nos levariam a sério. Tudo bem que também eu nem sempre percebia as palavras de ordem que berrava com a intensidade que só se tem com dezoito anos. Lembras-te do que me disseste no dia em que finalmente a liberdade chegou? No dia em que descobrimos que nada realmente nos unia só um ao outro - a não ser um vago sentido de pertença a um qualquer grupo coloridamente conotado (vermelhos, naquela altura éramos todos vermelhos).

Lembras-te?! Tens a certeza? Então porque te comportas agora, trinta-e-tal anos passados, como se tivéssemos sido meros companheiros de escola? Porque fazes um sorriso amarelo quando falo daqueles tempos e da tua saia ao xadrez, moda importada dos ventos de 68? Porque escondes, debaixo dessa bata branca, um ar de quem não reconhece a sua própria história. Espera - não reconhece ou não aceita?

Três décadas passaram, e a liberdade que quisémos não passa agora de um chorrilho de frases feitas - de uma enciclopédia do mundo fantástico que ninguém acredita (realmente) ter acontecido. É certo que naquela data tão coloridamente marcada no calendário (se bem que, agora, o vermelho esbateu-se e outras tonalidades lhe tomaram o lugar) ainda todos pomos a flôr na lapela e sacudimos o pó às palavras de ordem. É certo que ainda sabemos apontar as responsabilidades aos nossos filhos com um:«havias de ver como se piava mais fino na minha juventude», «tudo o que tens foi conquistado com o suor, sangue e lágrimas de muitos». É certo que guardas como um prémio que ninguém valida a tua sindicância passada. Mas, no dia-a-dia, nas horas rotineiras e pendulares, cristalizaste outros valores agora bem mais queridos - o conforto de um bom sofá e a crítica política mas pouco implicada, acompanhada da respectiva ausência nas urnas. A liberdade foi conquistada, mas fizeste questão em trocá-la por um carro e uma casa a prestações.

Desculpa, acho que afinal eu é que já não me lembro de ti...

R.

3 comentários:

Nuno Guronsan disse...

Ausência temporária de crítica política? Sim, por vezes a frustração atinge-me e não consigo no meu âmago reagir com a força ou vontade que gostaria. Ausência das urnas? Nunca, jamais, em tempo algum. Porque fui ensinado desde pequenino a reconhecer o quanto custou ganharmos a nossa própria democracia, e que se não intervirmos nas poucas janelas de oportunidade que temos, apenas iremos agravar o seu contínuo estado de fragilidade. Nunca hei-de trocar o meu voto pelo conforto de um sofá, pelo sol de uma praia convidativa, ou por pura preguiça.

Abraço, meu caro anjo que espanta o pó das suas asas.

angel_of _dust disse...

Talvez porque, ultimamente, me tem "assaltado" a mente a ideia de como os sonhos de muitos se tornaram no comodismo de quase todos... talvez porque vejo pouco empenho no meio de tanto discurso... talvez porque me apetecia pôr isto em cena... talvez por tanta coisa - hoje falei.

Mas, tal como tu, ainda não desisti. não existe sofá confortável o suficiente que substitua o sentimento de dever cumprido.

Nuno Guronsan disse...

Era só para dizer que gosto muito deste tipo de anjos, que trocam aquela coisa esterótipada da harpa por um bom saxofone, cheio de fumo e a tresandar a bebida menos próprias. Ou por outras palavras, adoro a banda sonora que aqui deixaste.

Abraço.