18 de março de 2009

O sangue no papel

A decisão de sangrar para o papel aquilo que nos vai na alma traz consigo um grande problema. Porque cria um elo com esse papel - porque cria uma dívida - porque cria uma necessidade. Um elo porque esse sangue, tanto tempo aprisionado numa cabeça tantas vezes pequena para tantas ideias, está agora espalhado num objecto físico; que se toca ou pelo menos vê; e que agora torna a prisão mais notável. Uma dívida porque, uma vez manchado o papel, sentimos que é sempre um desperdício deixar o espaço restante em branco. E por isso também cria a necessidade. Uma vontade - obrigação? - de sangrar coisas novas, de espetar mais fundo o punhal no coração. Apertar com mais força a ferida. Para que o sangue nunca pare de jorrar. Para que nunca o papel fique em branco. Sangramos agora, já não por não o podermos evitar, mas porque nos obrigamos a tal. E as palavras que vão saindo neste choro forçado, serão elas verdadeiras ou mero exercício de escrita? E cada gota de sangue... que forma têm as gotas de sangue que sugamos com a boca e cuspimos nesse papel? Que agora não passa de folha vermelha em que não é possível distinguir as diversas tonalidades. Apenas uma cor única, o que torna esta folha indiferenciável de tantas outras folhas também elas da cor do sangue. Um sangue que assim tanto pode ser nosso como de outro qualquer anjo ou humano.

A decisão de sangrar para o papel aquilo que nos vai na alma traz consigo uma grande vantagem. è escape. É fuga - para a frente ou para trás, não interessa (agora) - mas é fuga. Todos já ouvimos estórias de como os antigos médicos e curandeiros recorriam à sangria como forma de limpar o corpo de toda e qualquer maleita. Os males físicos mas também os da alma. Com o sangue perdido saíam as fraquezas, as fragilidades. Desapareciam as influências nefastas, os maus-olhados e os bruxedos. E agora o sangue que jorra abruptamente para o papel em branco, também ele nos liberta das dúvidas que vão povoando a nossa mente em noites de insónia. A angústias que nunca ousámos contar a ninguém. As ânsias que nos deveriam guiar, mas que apenas são admitidas na solidão do quarto vazio. Este casamento de conveniência entre o sangue e o papel liberta-nos do peso da frustração de não termos a capacidade - ou a coragem - de sermos aquilo que sonhámos. Devolve-nos a liberdade de podermos cumprir, sem hesitações, as regras e normas, reproduzindo o que esperam de nós. E, acima de tudo, permite-nos chamar 'liberdade' a essa obrigação de sermos algo. O que for. Que nem sempre escolhemos. Mas que aceitamos.

As folhas pintadas a vermelho são um alter-ego. São quase uma outra pessoa. Muitas vezes com opiniões vincadas. E com críticas directas à máscara que assumimos quando deixamos o sangue escondido no interior das veias. É quase uma purificação. Libertamos esse sangue-dor-vontade e assim respiramos melhor. Sai do nosso sistema. E com ele o desconforto que causa o ter muito para dizer e nenhuma energia para o fazer. O sangue que sai de nós é uma entidade estranha. Que nem sempre reconhecemos. Que nem sempre é bonita. Que nem sempre está satisfeita. Que nem sempre ganha a mesma importância no papel como teve - tem - dentro de nós. O "nosso" sangue é diferente à luz do dia. Às vezes parece mesmo disparate. Quando na noite anterior tinha o peso de uma vida. Por viver. E para acontecer. O papel sangrado é um testemunho. Do que somos. E um mapa. De para onde queremos ir. E o caderno já gasto de acumular todas estas folhas de papel (em que vamos continuamente sangrando) somos nós. Não o nós sw todos os dias. Mas o NÓS que está aqui. Agora. Até a madrugada voltar.

R.

3 comentários:

M disse...

e se só o lacrares? :P

bj meu

luis mendes disse...

e se o sangrar for um acto de purificação?

estou de volta...

abraço

Brain disse...

Como sempre,
Como só tu.
Bem característico.
Excelente!

Abraço