16 de outubro de 2009

Biografia de um caminho

para a P

Um pé atrás do outro. As mãos a tentarem inventar lugar onde repousar. E não denunciarem o nervosismo. Que não fica apenas pelas mãos suadas. É de todo o corpo – ansioso. E, acima de tudo, uma inquietação que é da alma. O caminho é feito num estado de dormência. Os passos decorados. Por vezes lentos. Mas a alma – essa já voa. A caminho. E é assim que se encurta a distância para o encontro de dois anjos. Para o inesperado. É de corpo ausente. E alma (demasiado) presente. Toda uma estória feita de conversas inventadas sob a luz amarelada dos candeeiros na rua. E quase sempre à noite. Numa tentativa de combater as insónias – a princípio. Ou de enganar o sono – depois. De voar de mão dada para lugares distantes – sempre. E pese a certeza de tudo, neste momento revêem-se (à pressa) na memória todas as pontas soltas. Tentando uni-las num novelo que explique esta ansiedade. Um enredado de emoções e sentidos. De imagens que se foram criando na nossa cabeça. Sorrisos que desenhámos a carvão e saliva. Olhares que pintámos de uma mistura de castanho e esverdeado. E tudo o resto, que não vendo, fomos rabiscando num caderno de ilusões. Pinturas de viagens a "ilhas" distantes – que fomos tornando perto. Criando pontes entre o aqui e o que está para lá de nós – o que nos espera além.

São as ilhas, os sorrisos e as pontes que nos fazem pesar os pés nesta caminhada na noite. E que impedem as mãos de encontrarem poiso certo. Pela expectativa. Do abismo que aí vem. Não um abismo fatalista e de contornos sombrios. Não pelo precipício. É um abismo porque faz estremecer a respiração. Porque desequilibra as pernas. Por trazer ser a incerteza do que se esconde para lá da linha crepuscular do horizonte. É um abismo bom. Onde apetece mergulhar e pernoitar sem receios. Deixarmo-nos afundar. Este peso nos pés – este formigueiro nas mãos – tudo faz parte deste mergulhar dos sentidos. Da mão nervosa em busca de outra mão. Tocar no outro e sabê-lo real. De sentir o aroma de quem nos espera. Aprender a reconhecê-lo na multidão. De fotografar essa silhueta na memória. Trocar o brilho dos candeeiros pela cintilação do olhar. E de gravar a sangue as palavras recebidas, o som do eléctrico que ajuda a quebrar o silêncio, o cão vadio que reclama a atenção destes transeuntes acidentais. E de, finalmente, poder também oferecer todas as palavras que fomos arquivando dentro de nós. Ou então ficar calado, por compreender não ser necessário explicar o momento.

Mãos. Aroma. Olhos. Sons. Palavras. Os pontos cardeais de uma rota tão inesperada como apetecida. Um caminho que embora pareça agora dormente, apenas o é por não ser preparado. Por ser aceite pelo que é – sem contrato nem pré-requisitos. Pelo risco. Pela vontade. Pelo nervoso miudinho que nos põe o corpo todo em alvoroço. E que faz a alma sangrar em catadupa. Expulsar os ressentimentos de outros. E abrir espaço para sentir novas memórias. Novas sensações. Cada gota de sangue é uma pérola – um passo na calçada – uma gota de orvalho que refresca os nossos sentidos. Um caminho guiado por uma linha vermelha – cor do sangue que palpita desenfreadamente. Uma linha vermelha que é bússola na noite. Na direcção de algo. Que não adivinhamos. Mas que queremos descobrir...

Os passos dormentes levam-nos ao lugar marcado – não por um X, mas por todas as palavras escritas e imagens partilhadas. Num instante, todas as hesitações cessam. Não importa o eléctrico que passa. Ou o cão que ladra. Não importam os últimos corpos que vagueiam pelas ruas. O mundo fecha-se. E como se de um palco se tratasse, há um foco de luz que ilumina o preciso momento em que as asas se abrem. Longe de estar terminado, o caminho é afinal uma estrada de destino desconhecido, mas que não queremos (podemos?) evitar percorrer. E nessa jornada, conhecermo-nos um ao outro.

Olá. [obrigado por estares aí/aqui]

R.

1 comentário:

Raquel Branco (Putty Cat) disse...

passei para te deixar um beijo...e dizer das minhas saudades.


putty