1 de outubro de 2009

Lembro-me da estrada

Lembro-me de uma estrada longa. Que vinha lá de longe e se perdia na linha do horizonte - ou até mais além. Lembro-me dos campos de girassóis. Tu sempre gostaste de girassóis, e por isso eu também. Os campos, que também eles se perdiam da vista. E lembro-me de estar calor. Sim, estava muito sol nessa imagem que me povoa a memória. E os girassóis reflectiam o amarelo-laranja da tarde de calor. Porque era de tarde - isso tenho a certeza. Talvez já pela hora do lanche. Porque também me lembro de ter fome. E as tardes não são realmente tardes se não tiverem um familiar lanche. E lembro-me de aqui e além uma ou outra árvore perdida. Talvez sobreiros, não sei... Mas acima de tudo lembro-me da estrada longa. Que ligava nenhures a lado algum. Uma estrada que existia apenas pela (nossa) vontade de andar. De palmilhar cada metro, cada quilómetro. Uma estrada que existia porque assim o sonháramos.

Andava pela estrada há já horas. Seguia-te no ímpeto de avançar. De perseguir essa linha do horizonte que teimava em nos fugir. Tentar agarrar o pote de ouro no seu fim. Não, espera... isso não é no arco-íris? Bem, seguia-te na vontade de chegar contigo a qualquer lado. Sempre tiveste esse poder sobre mim. De me conseguires convencer a seguir-te nos projectos mais absurdos - ou mais sonhadores. E de nunca fazer perguntas. Detestavas questões e hesitações desnecessárias. Ou assim julgava eu - acho que nunca te perguntei realmente. Seguia-te, pois, devotamente. E assim, nesse contrato tácito de cumplicidade, viajei contigo pelo mundo inteiro. Um mundo em que deixávamos de ser nós. E onde juntos fomos reis - onde fomos ermitas no cimo da mais alta colina - onde vivemos apenas dos nossos corpos em ilhas distantes - ou onde fomos viajantes numa estrada sem princípio nem fim. E nesse constante (re)nascer fomo-nos esquecendo de quem éramos. Ganhámos novos nomes. Fomos irmãos e amantes. Tu senhora e eu servo. Perdemos a idade e a família. Fomos um só. Perdemos toda a bagagem que haviamos trazido um dia - nem sei quando - no dia em que nos encontrámos. Deixámos de precisar de malas. E passámos a bastarmo-nos um ao outro. Era esse o nosso mundo.

Lembro-me de caminhar pela estrada. Com a linha do horizonte em frente - a linha do passado atrás. Ao longe uma névoa. Uma sombra. Uma miragem. E tu sempre a andar, sem explicações. As horas passando. A miragem é agora um serpentilhar de formas pouco a pouco reconhecíveis. E é assim que, mais tarde, se começa a vislumbrar uma cidade. Olhámos um para o outro. Parecia que, pela primeira vez, buscavas em mim uma resposta. Que eu não tinha a certeza de poder dar. Nas nossas jornadas muitas vezes haviamos inventado cidades, onde viviamos aventuras à nossa medida - cidades imaginadas que se moldavam constantemente aos nossos desígnios. Mas agora, era mesmo uma cidade real que se nos apresentava em frente. E agora olhávamos um para o outro. E pela primeira vez - ou assim me lembro - não dissemos nada. Não nos reinventámos. Não ganhámos novos nomes e idades. Pela primeira vez, nada havia para além do agora, de nós às portas da cidade. De nós perdidos. Sentimos que a nossa viagem tinha chegado ao fim. Que nós tinhamos chegado ao fim. E não existiram palavras para expressar a dor do terminar. Soube que o meu caminho seria diferente do teu. E também tu percebeste que a linha que nos unia estava prestes a se quebrar. Conhecendo-te como só eu, sabia que não entrarias na cidade. Que nunca suportarias ser apenas mais uma na multidão. Mas eu precisava do descanso. Precisava de me sentar e ver a vida passar - nem que fosse apenas por momentos, pelo gozo de o fazer. Virámos costas. Eu a caminho das portas da cidade - esperando finalmente encontrar o meu lugar. Tu, fixando o olhar na linha do passado, avançaste sem temor. Como se sempre tivesses sabido que era esse o nosso destino: encontrar a cidade que separaria. Não dissemos adeus. Seria ridículo fazê-lo, tendo em conta tudo o que viveramos juntos. Avançámos em direcções opostas. Para mundos opostos. Para viver vidas opostas. As portas da cidade fecharam-se atrás de mim. Foi a última vez que nos vimos.

Isto passou-se há muitos anos - talvez mesmo noutra encarnação. Sabes, os dias e as horas vão colando-se uns nos outros, até deixarem de ser dias e horas e passarem a ser apenas tempo passado. Mesmo eu já perdi a noção de quanto tempo passou desde que nos separámos. De há quanto tempo assentei poiso nesta cidade que nunca dorme. Fui criando raízes. Tentando misturar-me no meio da multidão. Até que, finalmente, me aceitei como mais um. Muito do que vivi contigo está já escondido no fundo do baú das memórias. Não me lembro da côr dos teus olhos, nem da textura das tuas mãos. O teu nome - nunca to perguntei. Mas não passa um dia que não te (re)crie na minha imaginação. Recordando as aventuras de que ainda me lembro. Inventando outras de novo. E continuo a seguir-te cegamente para todo o lado. Nas noites de insónia, és foste sempre serás a minha companhia.

R.

2 comentários:

M disse...

haja memória ;)

bj meu

angel_of _dust disse...

... e haja vontade e capacidade de inventar novas memórias e novos corpos que as habitem :)