3 de março de 2010

Eu não sou eu...

Eu não sou eu - assim começava o poema do Mário de Sá-Carneiro... Nem sou o outro - assim continuava. É dessa forma que começo agora a imaginar-me. Não sou facilmente definível. Não sou, de forma alguma, alguém que possa ser resumido num bilhete de identidade - agora cartão do cidadão - nem através de um currículo ou biografia. Nem eu próprio acerto com uma definição final, correcta e decisiva de quem se esconde por detrás deste nome - desta cara - deste corpo - desta alma. Existem duas faces para esta moeda. Dois corpos num só corpo. Uma alma partida em duas metades - nem sempre iguais. Uma fénix e um anjo. Umas mãos e umas asas. E sempre os mesmos olhos. Mas com sorrisos e lágrimas divididas. Umas com sabor a sala. Outras a sangue. E é numa fronteira aberta entre dois países que me encontro. Eu. No meio. Num crepuscular estado de indecisão.

Sou alguém que trabalha. Muito. Imensas horas. (Quase) todas as horas. O que outros poderão chamar de workaholic, eu chamo de necessidade de sangrar ideias de todos os poros de mim. De me sentir sempre em movimento contínuo para a frente. Às vezes sinto que lido mal com a estagnação. Com o aceitar que amanhã - daqui a um mês - daqui a um ano - tudo estará igual. Mesmo que esteja bem, não quero. Quero a diferença, a novidade. Não prescindo da surpresa. Da excitação e do medo do desconhecido. Da possibilidade de as coisas não correrem bem - ou então, serem um estrondoso sucesso. E sou muito frio. Racional. Sou a melhor pessoa para aguentar uma hecatombe. Porque mesmo no último segundo, eu arranjo a solução. Nem que para isso tenha de me imolar. Repetidamente. Sou uma fénix de trabalho. Morro continuamente. Mas no dia seguinte, estou já de volta com um sorriso. Mesmo que, por vezes, seja um sorriso amargo. E nisso sou bom - sou muito bom. A inventar. A aprender sozinho. A ajudar. A estar de prontidão. E sempre alerta. Tudo o que quero fazer, faço. E, não poucas vezes, faço bem. Mas isso é pouco - para mim, é muito pouco.

Mas também sou um anjo. Mais recatado. Que se esconde. Por vergonha. Ou recato. Um ser mítico que abre as suas asas vermelhas da cor do sangue e da paixão. Que tem cabelos da cor da noite. E olhos verdes onde se podem ver todas as estórias secretas do amor. Que ama como se não houvesse amanhã. E que quer ser amado como se fosse o único. Que não dorme. Que não quer dormir. Nunca. Que escreve para não rebentar. Que não se cansa de ver os outros. De lhes aprender as formas e as texturas. De lhes sentir o sabor. Um anjo que não consegue evitar ser assim. Em eterno estado de tensão. Sempre em busca do sorriso mais bonito. Da palavra mais intensa. Do beijo que pode mudar o mundo - o meu mundo. E que já descobriu que o prazer reside em satisfazer os sentidos. Os cinco originais e um sexto, talvez mesmo o mais importante... a imaginação. Admito ser um anjo sensível - mas não serão assim todos os anjos? E não resisto a toques e sussurros. A olhares. A cheiros e sabores. E não resisto a imaginar-me aqui e além. Sem barreiras. Sem inibições. Apenas eu e o meu corpo... e quem me quiser acompanhar. E descobrir os mundos que se escondem para além da linha do horizonte. Bem nos confins da cidade que nunca dorme.

Por isso, eu não sou um - nem outro. Não sou apenas aquele rapaz que nunca desiste. Que erra muitas vezes, mas nunca dá parte de fraco. Que se expõe às balas - mas que ninguém vê sangrar. Mas tão pouco sou sempre um anjo a caminho da redenção. Que está sempre de asas abertas e pronto a voar para ilhas imaginárias. Onde tudo é possível. O nosso corpo é possível. O nosso amor é possível. Nós - agora - hoje - somos possíveis. Não, sou um intermeio. E raras vezes sei onde se extingue um e começa o outro. São indissociáveis. Para mim. Para os outros, sou uma fénix. (Ou) sou um anjo. E raras vezes me dou a mostrar como um todo. Não sei se por defesa. Ou por incapacidade de ser homem e ser mítico em simultâneo. Ou apenas medo de não ser bom o suficiente em seja o que for. Seja nas mãos - ou no coração. As minhas asas vermelhas parecem atrapalhar as minhas mãos sempre prontas a trabalhar. E os meus pés quarenta-e-dois são peso demasiado, nunca me deixando voar para muito longe. E, por isso, estou sempre aqui...

Eu não sou eu nem sou o outro / Sou qualquer coisa de intermédio: / Pilar da ponte de tédio / Que vai de mim para o Outro. (Mário de Sá-Carneiro)

R.

4 comentários:

Nuno Guronsan disse...

Amigo, li as tuas palavras de um só fôlego. De tão belas que são, acho que vou ficar calado por uns momentos e deixá-las voar pela minha mente. Estou de rastos com tamanha beleza...

Abraço. Sentido.

Helena Marques disse...

E...mais uma vez...lindo !!! Quanto mais leio mais me apetece ler. Fico vidrada a olhar,delicio-me e não me apetece parar. Essas tuas asas de anjo,essa luz que te ilumina,esse teu dom...! Obrigada, pela partilha !! Amei !!!

angel_of _dust disse...

nuno: amigo, não sei se há beleza em esventrar-me assim... mas se calhar os "antigos" é que tinham razão - uma boa sangria cura tudo. fico à espera da cura.

helena: obrigado por teres pousado aqui. empresta-me um pouco desse entusiasmo, peço-te. por estes lados, nem sempre abunda.

c. disse...

Sou qualquer coisa de intermédio...


...o cinzento. o agridoce. o reponto da maré. a primavera. ou o outono. o suave perfume que resiste ao tempo :)