23 de março de 2010

Manual do vagabundo. dia 1

para ti... que pediste que te contasse. e para que saibas que temos sempre de arriscar para conseguir.


dia 1/5

manhã. mochila nas costas. roupa escolhida quase ao acaso. é difícil planear o que vestir quando se pretende o abandono. não seria suposto que alguém o fizesse de livre vontade... acho eu. mas roupa escolhida. pouca roupa. e livros. sou um vagabundo de livros na mala. de mochila às costas. porta da casa-lar-temporário-em-cidade-estrangeira fechada à chave. chave guardada. demasiado tentadora para a vista. porque traz imagens de conforto. metropolitano. centro da cidade. sempre atrasado. sou um vagabundo com horários trocados. que queria partir de manhã. mas que já vê os relógios do almoço. e que pensa só no almoço. praia. sempre gostei de cidades com praia. sandes e sumo na praia. pés na areia. corpo na areia. por momentos, parece que estou noutro lado. e não na minha cidade-emprestada. fecho os olhos e oiço as crianças na praia. é novembro. mas há gente na areia. e uns poucos audazes no mar. o suave mediterrâneo. olhos fechados. sinto-me feliz.

tarde. breves são as horas em que não pensamos nada. breves são os momentos em que esquecemos os problemas e as dúvidas. e estas primeiras horas de vagabundo por opção própria são de desligar de circuitos. privilégio de não ter fome, nem sede, nem verdadeira falta de seja o que for. tiro o livro. o meu preferido. o manual desta viagem. e que, não o sabia ainda, ficará para sempre o manual. até hoje. e assim vou passando as horas lendo sobre a poeira dos dias. de pés nús na areia. e de mente vazia. pronta para recarregar energias. é bonito o pôr-do-sol aqui. e é bom sentir que se pode vagabundear por opção - sem necessidade. é bom saber que as faltas que tenho não me impedem de voar. mesmo sem tirar os pés do chão. ou da areia... [porquê vagabundo por uns dias? vagabundo sem necessidade efectiva de o ser?porquê, quando tantas outras coisas me poderiam fazer voar - abrir as minhas asas... e voar? alhear-me de tudo e de quase todos foi vontade repentina, pouco pensada. talvez um dos grandes impulsos da idade. talvez hoje não o fizesse. não partisse por uns dias. ou talvez, hoje... não voltasse. me deixasse perder nas brumas das madrugadas de ilusão. ou nos solarengos meios-dias de inverno. na cidade-emprestada à beira do mediterrâneo.] primeira tarde perdida na areia. ou ganha repousando o corpo. da vida-de-todos-os-dias. das obrigações corriqueiras. talvez tenha sido isso que me levou a fechar à porta atrás de mim. levando apenas uma mochila nas costas. o poder pôr em pausa a minha vida. ou talvez tenha sido o querer criar novas memórias. deixar que elas cheguem a mim. ou talvez o querer saber como é... estar assim, perdido. ou então, partir em cidade-emprestada foi apenas um fogacho de juventude. irreverência de quem não tem quem o controle. na linha do horizonte, na direcção das áfricas, começa o sol a descer no seu caminho de descanso. e agora sinto-me só. o entardecer traz a solidão. a ausência. o não saber o próximo passo. o não ter casa para retornar - pelo menos por agora. a noite traz o frio e a primeira lágrima. estou no bom caminho - para me perder.

noite. primeira refeição perdida. deambulo pelas ruas da cidade. desde pequeno que gosto de andar. muitas vezes refazendo os mesmos passos vezes sem conta. nesta noite - primeira - calcorreio apressadamente as mesmas ruas e avenidas vezes sem conta. como se tivesse urgência de chegar. a lado nenhum. aqui e além, detenho-me onde está gente. diluo-me na multidão. à porta de bares. em frente aos quiosques de revistas que nunca fecham. cravo um cigarro. e reaprendo a fumar. para logo abandonar após este único cigarro. relembro que não gosto do cheiro e do sabor. minutos e horas passam. é difícil ocupar o tempo quando se fugiu de tudo. o frio aperta nesta noite de novembro. e um chocolate quente na roulotte da avenida sabe bem. traz uma ilusória sensação de bem-estar. deveria ter trazido outro casaco mais quente - lembro agora. talvez em troca de menos um livro. deveria ter pensado melhor. no que trazer. e porque faço isto. deveria, sem dúvida nenhuma, pensar mais nas minhas opções. doem-me já pernas. de não parar de andar. estou cansado. tenho de encontrar onde dormir - e resistir ao impulso de voltar para casa. preciso mesmo de para e fechar os olhos. mas a verdade é que não me consigo misturar com os vagabundos. com os verdadeiros vagabundos. até o facto de pensar que não me quero 'misturar' é já imagem de que tenho vergonha. de estar aqui - nesta situação. porque quero. precisamente porque não preciso de estar deste lado. porque estou sempre do outro. e agora, como missionário no meio dos indígenas, falho. porque não sinto que deva estar aqui. porque não mereço roubar espaço a quem dele precisa. e assim, passo o final de noite sozinho. volto à praia. será aí que quero passar a minha primeira dormida fora do ninho. também a manhã não tardará. e aqui todos poderão confundir-me com um qualquer folião ébrio perdido no caminho para casa. encosto-me ao muro que separa a marginal das areias. fico na penumbra, escondido de todos. ao longe, um casal de amantes julga estar a salvo de olhares indiscretos. na penumbra do muro. encolho-me e desapareço. agarro a mochila. ouvem-se os primeiros gritos das gaivotas. a manhã começa a despontar muito levemente no horizonte. fecho os olhos.

(continua...)

R.

1 comentário:

c. disse...

...a viagem do dia-a-dia promete :)



(e sabe tão bem recordar o que me trouxe até aqui*)