16 de julho de 2010

Via sacra(?)

Os olhos baços. E as pernas quebradas. Estou cansado. As manhãs parecem não existir. As longas noites de insónia vão quebrando as fronteiras entre o que é - deveria ser - o dia e a noite. Os meus olhos fecham e abrem... e quase parece que o tempo não passou. Não existem pausas - nem intervalos para recuperar o fôlego. Um sentir ininterrupto - entre as mãos do trabalho e as asas da emoção. E neste caminho que percorro vai-se diluindo o sentido da jornada. Vou perdendo a noção e as razões de as noites e os dias se colarem quase na (im)perfeição. Porque há algo de macabro em forçar a alma a acompanhar os ritmos do corpo. Porque uma é frágil - e o outro... muitas vezes também. E porque o sonho e o desprendimento nem sempre ganham à fadiga e o desalento. E os prazeres da madrugada perdem cor quando a manhã raia, e temos de vestir uma roupa - e tirar o brilho dos olhos, para não ofuscar ninguém.

Vou sentindo as horas, minutos e até segundos passarem por mim como água corrente de uma fonte. Vou sentindo cada momento escapar-se por entre os meus dedos. E os silêncios que me tranquilizaram tornam-se agora incómodos. Demasiado ruidosos. As noites de acalmia são agora noites de solidão. Porque me habituei a ficar aqui - assim - sozinho. Criar um mundo a uma só voz. E que agora também ela se cala. Parece não haver nada mais a inventar ou a dizer. As cores que insisto em pintar vão perdendo o tom. Eu vou perdendo o tom. Existe uma monotonia neste mundo que inventei. Porque é um mundo de extremos. De excesso de palavras e fotografias. Mas também de ausências e faltas. As ruas desertas estão mesmo desertas. E o cão que sempre ladrou em solilóquio nas minhas memórias de viagens na noite parece ter partido para outras paragens. Onde outros cães - e gatos - e pessoas - o acompanham num concerto de vozes e murmúrios. E eu aqui fico. Nesta rua onde sempre habitei. Que desenhei a meu prazer com a quantidade exacta de candeeiros e janelas - com a quantidade exacta de sombras e silêncios. E onde me senti sempre bem. Porque não há tela melhor que aquela que encontramos (quase) vazia. Porque poderá ser o que desejarmos. Mas agora, esta rua mostra-se como sempre foi - uma rua vazia, onde não há pessoas - onde as janelas estão fechadas, e todas as luzes já se apagaram. Onde nem um solitário cão me acompanha com o seu ar complacente e companheiro. Esta rua é uma via sacra que pareço ter de cumprir em isolamento. Lamber as lágrimas e as chagas do abandono. E usar uma coroa de espinhos, em honra das memórias de noites passadas.

O ser divino que vai sugando a noite com os lábios, oferecendo os seus braços e asas, fica por vezes fraco. Porque ser-se anjo cansa - exige de nós a energia de muitos mundos. Um por cada memória ou ilusão. Por cada beijo ou toque. Por cada olhar ou abraço. Não existem meias-medidas para quem deseja o prazer. Mas cansa. Porque damos tudo. Corpo e alma. Em cada aventura. Arranhamos e mordemos. Amamos com as mãos, olhos, boca, cheiro, sexo... Largamos a roupa-de-pesos e voamos em direcção a ilhas imaginadas. E, por isso, também quebramos. Tenho arquipélagos infindáveis dentro de mim. De alguns esqueci já o nome. Mas estão aqui dentro - de mim. Ocupando o espaço do descanso. Da tranquilidade. Da acalmia. No interior do meu corpo perdeu-se o lugar para estar quieto. Ficou apenas a impaciência. E nem as quebras e os alarmes - nem as quedas e pequenos-grandes desesperos amenizam esta vontade de... de... nem sei bem. De continuar cansado mas sempre alerta. De saber que nunca poderia ser e viver de outra forma. De não aceitar que existe uma fronteira bem vincada entre a noite e o dia. Ou pelo menos, combatê-la até ao limite. Sabendo que há (haverá?) um preço a pagar.

Aceitei esta via sacra. Mas não quero a redenção dos meus erros. Amo e desejo cada um deles. Cada cicatriz. Cada grito ou suspiro ou gemido. Nunca acreditei muito em destino. Mas se estiver enganado - e como gostaria - este é o meu. Querer mais mais. Sofrer por vezes. Chorar e berrar escondido na sombra. Morder a paixão e a luxúria. Seguir cada passo de uma via (por vezes) dolorosa. Sem desejar ascender aos céus. Como não trocaria os meus olhos verdes, não troco os meus pecados por nada. Se tenho de caminhar sem descanso - pois que seja. Aceito. Quero. Permitam-me apenas que às vezes fraqueje... como hoje. Até um anjo precisa de descansar (pouco).

R.

1 comentário:

Sensi disse...

Ler-te é -quase- sempre, ler-me.

Beijo

SENSI

(-quase- sempre escondida, mas sempre ficando por aqui - perto de ti :-) )