2 de outubro de 2015

Há muito que... [voltar à casa de partida]

Há muito que não encontrava o livro onde colei todas as fotografias de todas as viagens que fiz. Não das voltas e (re)voltas das rotinas. Mas das viagens que fiz a universos-interiores e países-ilusórios. Há muito que essas viagens estavam transparentes e inertes, escondidas no lufa-lufa dos dias sempre iguais. As viagens que me alimentaram a alma e o corpo... antes de me ter detido em parte (in)certa. Há muito que estava esquecido o caminho para a ilha sempre verde. Onde, em tempos, pernoitava ao relento - deixando que o orvalho me alimentasse todas as ilusões - criando palavras tão líricas como verdadeiras, tão rápidas no som e na escrita como eternas no sentir. Na verdade, há muito que as ilusões não se fixavam tempo suficiente em mim; eram passagem fugaz, sempre a fugir das minhas mãos, escoando-se como areia solta. Mas numa praia suja, sem linha do horizonte.

Ou, talvez, não estivesse tudo isto esquecido. Se calhar, os corredores que me levavam a estas paisagens-da-mente foram dissimulados atrás de portas - fechadas a chaves guardadas no canto mais escuro do baú das memórias. Trancas nas portas, chaves algures guardadas. E assim a poeira foi engolindo as chaves, as portas, os corredores, as memórias - as viagens. Foi uma espera demorada - o tempo em que as asas foram atadas ao corpo, até a sua existência quase não ser notada. A olho nu. Porque os olhos da alma nunca esqueceram verdadeiramente a divisão secreta onde a vida era diferente. E, nesse livro - onde estavam essas viagens, onde estavam essas memórias, onde estavam essas ilusões - ficaram tantas páginas em branco. Como se a promessa de mais viagens estivesse lá, a tentar chamar-me. E, a espaços, ia ouvindo esse chamamento como um sussurro segredado ao ouvido - quase imperceptível, mas que fica a zumbir. Um som agudo que foi tirando a concentração para agir. Uma moinha que dizia "não vás por aí" [ahh, Régio, estavas tu certo ou errado?]. Mas, mesmo com a cabeça em constante sobressalto, fui deixando que a 'vida' [chavão para tudo o que não sabemos-queremos controlar] me levasse por "aí".

O tempo passa. É inevitável. E não há porta que não empene, se o que esconde teimar em ranger, estremecer, ressoar - como se lamentasse o esquecimento a que foi (falsamente) obrigado. A porta range, o corredor estremece, as memórias avivam-se. E tudo muda... novamente. O corpo pede o exercício do risco. De deixar as mantas e mergulhar nas águas que julgamos frias. De fugir da âncora que enferruja, abraçando a corrente que nos leva aos países-(re)descobertos. Ousando as profundidades, percebemos que aí também se respira. Melhor... apenas aí se sente o oxigénio bombear os pulmões, encher o peito outrora encolhido - apenas aí se vê que a penumbra tem mais luz, mesmo com os olhos fechados - apenas aí a a emoção e a razão decidem declarar a sua paixão-indivisível, o corpo é realmente um elemento vivo.

Se, por momentos - longos, demasiado longos - me desviei do caminho, preciso agora voltar. Com a urgência de quem deve empreender uma jornada para salvar um mundo: o meu Mundo. Interior - vivendo de emoção. Único - mas a partilhar com outro ser igual. Quase impossível de descrever por palavras - mas de fácil compreensão, bastando um ligeiro tremer dos lábios ou um piscar de olhos. Voltar à casa outrora solarenga. A casa onde dispus todos os meus livros, todos os meus discos, todas as fotografias que recolhi - em todas as viagens que fiz, mesmo quando parado num banco de jardim numa praia de outono. Voltar agora à casa onde janelas há muito estavam fechadas. Onde, durante muito tempo, ninguém habitou. A casa que um dia, quase sem perceber, coloquei à venda pelo pior preço. E que, por fim, descubro como para-sempre-minha. Chegou a hora de a habitar e abrir as janelas de par em par - a noite pede que asas voltem a abrir, o sangue a correr, os olhos e os lábios a saciarem a sede na sombra que deixei escapar entre os dedos. Mas que se manteve ali, presa em mim.

Até já?
R.

4 comentários:

c. disse...

[voltar a casa. ao porto seguro. cais de partida para tantas viagens. tantos sonhos]

a caminho*

angel_of _dust disse...

[descobrir que - mesmo empoeirado - o caminho não se perdeu. redesenhar as placas. encher a mochila. mas só com o indispensável: a vontade e as ilusões. esquecer os mapas. sair. arriscar. voar]

M disse...

é possível voltar ao sítio onde se foi feliz? e voltar a sê-lo...feliz?

boa viagem e/ou bom regressos

angel_of _dust disse...

será sempre possível voltar aos lugares antes habitados. re-descobrir o caminho que nos levou ate é esses portos-de-abrigo. países desejados... ou melhor, inesperadamente necessitados.

será sempre possível voltar, mas agora devemos saber o que de novo podemos oferecer a esses lugares. porque somos diferentes - quem sabe, mais disponíveis. nunca tentar repetir o que já passou... mas sim, perceber que da mesma estrada deverá nascer uma nova jornada.