23 de setembro de 2016

Viena. Paris... #2

As melhores viagens são aquelas que nascem de nós, por querermos partir mais até do que chegar seja onde for - e que se partilham intimamente com alguém. O querer sair - o desejar abrir a porta e arriscar a estrada que desenhámos - vem de dentro de cada um. Mas como seguir um caminho sem ninguém com quem trocar experiências e aventuras, com quem trocar olhares cúmplices, com quem trocar vontades e ilusões? Como inventar um sentido para a vontade de partir e depois (tentar) cumpri-lo só-em-nós? Muitas travessias (no deserto das convulsões ou nas águas da serenidade) tentam cumprir-se sem mais pegadas ao lado das nossas. Passo a passo, tentamos trilhar linhas e curvas que nos façam distanciar do ponto de partida - mas que nos conduzem a coisa nenhuma. Sem companhia, as viagens gravam apenas palavras que não serão ouvidas por ninguém - já sem a devida força aquando da inevitável chegada. Então, é de mão dada - de sorriso cúmplice - com um bater do coração em sintonia com o nosso, que as viagens ganham verdadeiro sentido - e se podem evidenciar como sendo as melhores e mais prementes.

Paris. E assim partimos. Mapas com estradas em aberto. Destino ainda incerto. Ilusão ao rubro. E tudo isso por ser um caminho acompanhado por outra figura igual à nossa - se não em forma, em vontade e emoção. A companhia certa. Mesmo que não saibamos (ainda) que é realmente a certa. Asas semelhantes às que ostentamos no dorso - a mesma necessidade de correr, de ousar fechar os olhos... e voar. O coração batendo forte. Impaciente. Porque em tão especial companhia, a viagem não se torna mais óbvia. Antes pelo contrário - felizmente. Com uma sombra a dançar junto da nossa, seria fácil (?) imaginar que tudo seguiria um plano - também ele com esse carimbo de "acertado". Mas este certo-mais-que-tudo nada tem a ver com previsível e seguro. Nada tem a ver com uma certezas de matemáticas aborrecidas, que nos conduzem a um marasmo - arrastando-nos de volta ao ponto que teimámos em abandonar. Não, este certo-mais-que-tudo - uma certeza da companhia ser quanto baste e tudo significar - prende-se com algo bem mais valioso. Com um fogo que sentimos atear dentro desta complicada máquina que nos vai bombeando a ilusão. Com uma inquietude nos impelindo a sempre querermos e exigirmos (de nós próprios) o que os nossos sonhos desenharam em noites de silêncio. Em noites em que delineámos esquissos e rotas - sem saber se alguém seria capaz de inventar cores que lhes dessem vida. Se calhar, sem nunca pensar sequer em partilhar esses desenhos tão íntimos. Quem sabe mesmo se não terá sido essa companhia que descobrimos-inventámos-imaginámos ser a-certa que uma noite nos fez brotar esta inabalável vontade de voar. Para fora das palavras-que-ficam-por-dizer - bem para dentro dessa neblina que teima em querer esconder o que realmente importa.

Terá (mesmo) sido nesse momento, em que o estranho se torna familiar, que os sonhos - as estradas - as ilusões começam a fazer sentido. Se calhar, nem damos (demos-dei) por isso a princípio. Atribuímos ao acaso o cruzar com alguém que traz no olhar a mesma ânsia de ser (bem) mais que um pêndulo nos dias-sempre-iguais. E, por isso, talvez as primeiras palavras sejam sempre dominadas pela novidade. Sim, sei que é dessa forma. Pelo novo, inesperado. Por ainda não ter aprendido "como se fala" com alguém que agora chega e se começa a instalar junto a nós. As palavras - essas primeiras - nascem do impulsividade natural de quem navega ainda com pouca arte. De forma intensa, as sombras unem-se em breves momentos recortados pela Lua-confidente. Breves no tempo mas que têm o sabor e cheiro de uma vida inteira. Sem dominar regras que nunca quiseram aprender, os viajantes vão descobrindo um ao outro. As primeiras melhores viagens são sempre inexperientes, atribuladas e vividas sofregamente. [Será por isso que "facilmente" nos podemos me pude perder no caminho, virar numa esquina errada?] Mas, por vezes, da mesma forma que surjem, essas viagens acabam por se diluírem nas rotinas - essas redes que parecem tão fáceis de fintar, mas que nos envolvem e desviam (quase) sem darmos por isso. De repente, o tempo passou - as horas, os dias, as semanas e os meses correm sobre nós - e essas viagens escaparam das nossas mãos para um qualquer álbum de fotografias. Onde a vontade de mergulhar bem fundo dá lugar aos sorrisos pouco visíveis de quem olha para as memórias de algo-que-já-passou. E mesmo os anos se acumulam [como o tempo passou - como foi possível estar tanto tempo imóvel e apenas raramente me dar conta - como adormeci onde sempre pensei não em deixar ficar] e vão cobrindo de uma poeira fina as imagens, sons, cheiros e toques da aventura de ser-mais-eu-contigo. Uma poeira que deixa ver a tempos o que nos foi escapando, mas que parece sujar-nos os dedos o suficiente para nos fazer recuar.

O tempo passa. E os viajantes parecem perder-se um do outro. Parecem... mas assim não é. Porque a linha invisível que une aqueles que ousaram, um dia, embarcar na melhor viagem, essa linha continua lá. Mesmo escondida, ainda a sentimos repuxar a nossa ilusão - espicaçar o nosso engenho de sentir - relembrar como espírito que... que o eu-tu-nós ficou gravado de forma impossível de cicatrizar. E ssa ferida-que-é-um-sorriso vai chamando pelos viajantes. E parece haver sempre um farol que nos vai alumiando ao longe, indicando uma terra distante - mas que conhecemos como o nosso corpo. E mesmo afastados, os viajantes sabem que o retorno é / terá de ser possível. Ou assim acreditam...

E no fim de tudo - ou esta viagem estará ainda longe de terminar? - continua a ficar por dizer claramente que o caminho e as palavras de outros poderá bem ser uma cópia - em celulóide - da que nós desenhámos. Com outras paisagens e sons, mas com a mesma inesperada certeza que "isto é especial". Que outros possam ter inventado o que aqui foi vivido de forma urgente. Porque caminhos diferentes procuram a(s) mesma(s) verdade(s): nem tudo tem de ser dito - as palavras mais fortes surgem não da necessidade consciente, mas sim da expressão pura do que vai palpitando na nossa alma.

... Ao longe, uma península. Não me lembro de a ter visitado. Mas é-me tremendamente familiar.

R.

2 comentários:

c. disse...

O encanto da companhia certa é encontrar quem nos corresponda do outro lado da ilusão, quando sempre julgamos sonhar sozinhos. O conhecer a inesperada sensação-de-nada-a-perder-a-tanto-a-ganhar. E o acreditar - porque vimos - que os sonhos são afinal pedaços de realidade que teimamos em não esquecer (mesmo quando não dominamos a arte de os tornar mais que - apenas - sonhos).

angel_of _dust disse...

O encanto da companhia-certa para a viagem-certa é saber que existe alguém que fala a mesma língua que nós. Que não será necessário o esforço de "traduzir" o que ansiamos para quaisquer palavras de comum entendimento. O encanto nessa pessoa que (julgamos/sabemos) certa é saber que existe mesmo lugar para a ilusão. A ilusão de encontrar essa mesma pessoa (sim, não parece fácil que exista mais que um anjo-certo-para-nós). O encanto é saber que o tempo parece ficar suspenso - e que o peso dos dias acaba por perder o sentido, e que haverá um porto de abrigo que permanece seguro.

Os sonhos são pedaços-do-tamanho-do-universo que nos chamam... que nos impelem a redescobrir as regras. E a querer saber como torná-los na mais palpável das jornadas.