2 de janeiro de 2017

Um sussurro na terceira letra.

Às vezes, basta um momento - num local - numa altura. Sem plano de acontecer. Não se esperar, não procurar. Estar incauto - e ser surpreendido. Se calhar, é assim que deve acontecer. As melhores cosias não pedem para chegar. Sem anúncio, entram e rapidamente se instalam em nós - dentro do nosso corpo - alimentando a nossa ilusão. De repente, algo parece ser-estar diferente. Por ouvir um breve sussurro a chamar-nos... ou assim nos parece. E que corta o silêncio ensurdecedor da casa vazia. Por vislumbrarmos uma luz... ainda difusa. Que, no meio de uma qualquer noite escura de inverno, rasga sombras nas paredes nuas - no nosso corpo cansado. Por sentirmos um ligeiro arrepio na pele... que faz tremer. Como uma impressão de vida que (re)nasce. Todo o corpo e ilusão sentem que esta noite não é igual a outras tantas que passaram. Porque a fadiga de tudo-o-que-precisamos-fazer é esquecida. O dia que foi longo, já a pedir-nos o reparador descanso, afinal não impera. Entramos no domínio da nocturna emoção. A cidade-que-nunca-dorme permanece lá fora, sempre igual. A vida do mundo não se desvia do seu curso. Hoje como ontem. E assim continuará. Mas aqui, onde estamos, numa casa vazia invadida pela noite reparadora, algo ficou subitamente diferente. Estranho. Um ligeiro formigueiro no peito ganha força. Cresce a olhos vistos - e a alma sentida. A chave-de-nós roda, abrindo o baú das sensações. E (re)acende-se o universo-cá-de-dentro. Assim, (aparentemente) do nada. Reflectido no espelho, um brilho nos olhos verdes - sim, afinal por debaixo da secura, existe ainda brilho a poder despontar. Como se algo - ou alguém - alimentasse uma vela... e finalmente voltássemos a ver. Não apenas olhar... ver.

Paramos. Às vezes, é preciso fazer uma pausa para respirar. Fazer contas de cabeça e obrigar o coração a abrandar o ritmo. Pelo menos tentar... por mais difícil que seja pôr freio à vontade que o instinto nos indica. Paramos e pensamos. Em tantas noites iguais, as janelas que nos separam do mundo foram fechadas - buscando o merecido repouso de lutas e caminhos que nem sempre levaram a portos seguros. Mas, às vezes, basta um momento. Uma noite em que a janela fica entreaberta, deixando apenas passar restos de neblina e frio da noite de inverno. E se sorte, destino, profecia - ou coincidência... - existem, numa noite-entreaberta-ao-mundo algo pode mudar. A noite pode ser interrompida por uma passagem. Por um vulto que decide cruzar a nossa "janela". Visita inesperada. Desconhecida. Sem sabermos nada, a voz ainda pouca força tem. As palavras de ocasião saem. Perguntas e respostas em sucessão. Apalpamos um terreno que, aparentemente, não conhecemos, mas que vamos sentindo como familiar. Parece estranho. A "janela" estar aberta - a noite trazer um vulto com o frio de inverno - não temermos a sua chegada - deixarmos entrar. E o estranho passa a estranhamente fácil - certo - bom. Muito bom. As novas palavras nascem com facilidade. As frases são ditas quase sem pensar. Mas sempre a sentir. melhor, a sentir cada vez mais. As imagens - escritas ou gravadas em fotografias fugazes - vão desenhando pontes que nos levam à outra margem do rio. E surgem também os silêncios. Não daqueles que adivinham a ausência. Estes são silêncios que trazem tranquilidade - que nos dizem que não existem palavras suficientes para dizer da calma, da serenidade... da vontade de saborear os momentos. Cada um - demoradamente - sem pressas. Na ânsia de querer mais; mas na certeza do tempo ser o certo para ir descobrindo o caminho rumo a uma nova paisagem. Um destino que ainda não clarificamos, mas que nos vai chamando com o seu canto irresistível. E, então, arriscamos. Avançamos. Ousamos... pensar menos, querer (bem) mais. Passo a passo. Etapa a etapa. Ainda sem sentir qualquer cansaço na viagem. Ainda à procura de como chegar lá... ao outro lado do rio. Sabendo que não há melhor estrada que aquela que desenhamos com o coração aberto e vontade cheia. Faróis de luz e sombras que levarão o corpo para onde ele é esperado.

Mesmo sabendo que tudo será descoberto a seu tempo, e que não são precisas premissas antes de partir - mesmo assim - há que nomear. Voltar às palavras, nem que seja para poder gravar na alma qual o nosso destino. Dar ao desejo de viajar uma meta palpável. Que pode até ser uma letra - tal como sempre quisemos reduzir o nosso próprio nome. Terceira letra do alfabeto. Quase redonda, como é a rotina de todos-os-dias - mas ainda aberta, como a vontade de abrir as asas e não ficarmos presos ao pendular passar das horas-sempre-iguais. Uma letra que diz, à partida, pouco - mas que (já) significa tanto.Que lida de fora, é apenas uma singular letra - perdida por não ser junta a outras, por não ser princípio nem meio nem fim de palavra. Mas que é bem mais que isso - quando vista de dentro. Porque diz de uma vontade, diz de um sorriso que fica rasgado no rosto e que, teimosamente, vai fazendo morada em nós. Na face e na caixa-em-forma-de-coração que nos habita o peito. Uma letra - uma imagem - um encontro... um início. Um princípio de vontade. Um meio de saber que, sim, é verdade que a janela estava aberta e por lá entrou novamente a ilusão. Um fim que não se conhece - mas que, agora, se deseja (tanto) saber. Não para fechar a porta, a janela... fecharmo-nos. Mas sim para encerrar todas as dúvidas da estranheza.  A incerteza - começar a aventura. Mas sim para colar palavras bonitas a essa letra. Imagens bonitas ao vulto que ousou entrar e pernoitar na casa vazia. Respirares e suspiros muito bonitos à vontade de tocar o que se lê.

Existiu existe um sussurro. Que traz a terceira letra. A letra que dá o mote para a palavra necessária: Começa.


R.

3 comentários:

c. disse...

existem letras que sozinhas são mudas. quase sem expressão. que passam despercebidas no meio de todo um alfabeto. até que um dia aprendem que, de encontros inesperados, nascem novas experiências. e percebem que há letras que nelas se transformam em acção. como quando lemos um Começa, quase sem significado, e sabemos que o que interessa é efectivamente começaR, ou partiR, avançaR, arriscaR. e no fundo é essa pequena letra - que gravei para sempre no coração - que marca o ritmo da aventura. mesmo quando não sabemos o destino onde pretendemos chegar - mas alguém estará à nossa espera - nem tão pouco o rumo que devemos seguir até lá chegarmos. mas, dizem, o melhor de cada viagem é o caminho - e as belas imagens que vamos coleccionando a cada vez que arriscamos começaR mais uma etapa :)

Florencia Sader disse...

Que bonito, Ricardo!

angel_of _dust disse...

Obrigado Florencia :) Beijos!