Mas por estes dias, semanas ou meses ou anos - perdi há já muito a noção do passar do tempo - os meus vôos nocturnos esbarraram com um outro anjo, feminino por sinal. Após os primeiros momentos de habitual sedução, ainda na ignorância de estar perante uma parceira de sina, comecei a perceber nesse ser algo a mais. Vislumbrei nela todos os sinais evidentes de estar frente-a-frente com alguém que descobria e conhecia todas as minhas angústias e memórias, todas aquelas histórias que eu próprio tinha aprendido no dia em que as minhas asas na altura brancas como a cal tinham crescido, e eu tinha percebido que não mais poderia fugir do destino marcado. Mas que tinha este anjo de formas esbeltas e voz ondulante como os mares calmos diferente de todos os outros que tinha já encontrado e perdido na poeira dos dias? E porque eram suas asas de um azul brilhante? Este anjo empunhava uma calma que me perturbava, pois nunca nenhum de nós tinha conseguido controlar assim os seus sentidos e desejos. Decidi dedicar o meu tempo a este anjo, ganhar-lhe a confiança, roubar-lhe o segredo.
Passaram agora anos, meses ou apenas dias, e descobri que a razão daquela inusitada calma deve-se a um facto surpreendente: aquele anjo de formas onduladas tem uma filha. Se na natureza de qualquer animal a reprodução é algo de soberbo, quanto mais nos anjos. A descendência permite perceber apenas as qualidades que os anjos detêm, pois as falhas, as incertezas, estão ainda escondidas no tenro corpo. Um anjo em pequeno é um anjo em perfeição. E aquela anjo-menina ao colo daquela anjo-mulher são o retrato de algo que apenas nos sonhos acredito: alcançar a paz de espírito - amar outro ser como parte da nossa própria alma.
És agora o meu retrato de cobiça. Tu, anjo renascido, mulher de formas perfeitas e alma completa. Admito-te pelo que és - mas invejo-te pelo que alcançaste. Resta-me permanecer a teu lado, esperando que me chames e acompanhando-te nas viagens para as quais me convidares. Somos poucos e muitos de nós estão prestes a desistir - eu próprio fraquejo muitas vezes por dia. Por isso, eu estarei aqui. E desejo que o teu anjo-criança saiba crescer à imagem de quem a criou. Se assim for, há certamente esperança na nossa espécie.
R.
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