26 de outubro de 2006

A menina ao colo

Uma das primeiras verdades que se descobre (ou inventa?) quando nos assumimos como anjos, sejam eles caídos como eu ou ainda em plena força como nenhum que eu conheça, é que estamos condenados à solidão. Não significa isso que passemos o resto da eternidade em total isolamento, nada disso. Nunca poderemos ser anjos por completo se não andarmos imersos nas multidões, disfarçados por entre os demais, despercebidos nas rotinas e nas lengalengas que são os dias das cidades que nunca dormem. Mas um verdadeiro anjo, por mais acompanhado que ande, tem sempre o seu centro em si, na sua existência única e irrepetível. Podemos amar, odiar, até reproduzir, mas um anjo nunca conseguirá dar a entender aos outros toda a sua essência, todas as suas facetas. E se é essa a sua grande característica definidora, é também a sua pesada herança e tormenta.

Mas por estes dias, semanas ou meses ou anos - perdi há já muito a noção do passar do tempo - os meus vôos nocturnos esbarraram com um outro anjo, feminino por sinal. Após os primeiros momentos de habitual sedução, ainda na ignorância de estar perante uma parceira de sina, comecei a perceber nesse ser algo a mais. Vislumbrei nela todos os sinais evidentes de estar frente-a-frente com alguém que descobria e conhecia todas as minhas angústias e memórias, todas aquelas histórias que eu próprio tinha aprendido no dia em que as minhas asas na altura brancas como a cal tinham crescido, e eu tinha percebido que não mais poderia fugir do destino marcado. Mas que tinha este anjo de formas esbeltas e voz ondulante como os mares calmos diferente de todos os outros que tinha já encontrado e perdido na poeira dos dias? E porque eram suas asas de um azul brilhante? Este anjo empunhava uma calma que me perturbava, pois nunca nenhum de nós tinha conseguido controlar assim os seus sentidos e desejos. Decidi dedicar o meu tempo a este anjo, ganhar-lhe a confiança, roubar-lhe o segredo.

Passaram agora anos, meses ou apenas dias, e descobri que a razão daquela inusitada calma deve-se a um facto surpreendente: aquele anjo de formas onduladas tem uma filha. Se na natureza de qualquer animal a reprodução é algo de soberbo, quanto mais nos anjos. A descendência permite perceber apenas as qualidades que os anjos detêm, pois as falhas, as incertezas, estão ainda escondidas no tenro corpo. Um anjo em pequeno é um anjo em perfeição. E aquela anjo-menina ao colo daquela anjo-mulher são o retrato de algo que apenas nos sonhos acredito: alcançar a paz de espírito - amar outro ser como parte da nossa própria alma.

És agora o meu retrato de cobiça. Tu, anjo renascido, mulher de formas perfeitas e alma completa. Admito-te pelo que és - mas invejo-te pelo que alcançaste. Resta-me permanecer a teu lado, esperando que me chames e acompanhando-te nas viagens para as quais me convidares. Somos poucos e muitos de nós estão prestes a desistir - eu próprio fraquejo muitas vezes por dia. Por isso, eu estarei aqui. E desejo que o teu anjo-criança saiba crescer à imagem de quem a criou. Se assim for, há certamente esperança na nossa espécie.

R.

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