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12 de setembro de 2006

A mercearia

Na rua que me levava todos os dias para a escola, quando era pequeno, havia uma mercearia - uma daquelas mercearias que hoje-em-dia já não há... ou melhor, quando as mercearias eram realmente isso, e não restaurantes finos que "piscam o olho" ao típico e popular. Mas havia essa mercearia. Ao balcão, uma senhora que sempre era afável com todos os que lá entravam, e que sempre se esforçava para que ninguém saísse sem levar o que precisava.

Algumas vezes, no meu caminho para a escola, parava para me deliciar com tudo o que a montra me oferecia. Desde as batatas à molas da roupa, da lixívia às vassouras. Mas o que sempre me prendia a atenção eram os chocolates. Não que os chocolates daquela mercearia fossem melhor que quaisquer outros chocolates de quaisquer outras lojas - mas aqueles eram os chocolates daquela mercearia, a mercearia que todos os dias me piscava o olho e convidava a entrar. Lembro-me de contar as moedas que tinha no bolso, sempre na esperança que "hoje" fosse dia de comer um daqueles chocolates. E muitas vezes era. O meu pequeno segredo de gula...

Outras vezes, eram os cromos que me perdiam do caminho (quase) sempre directo de casa para a escola. Até hoje, não me saem da memória as caras dos jogadores do Euro 88, ali impressos num papel brilhante. Raramente acabava as colecções, porque o meu verdadeiro interesse era (sei-o agora) o momento de abrir aquelas saquetas de papel e descobrir que surpresas me reservavam. Jogadores de nomes esquisítos vindos de lugares que nem imaginava onde ficavam preenchiam-me as dias de intervalos das aulas e de lanches de fim-de-tarde. Colava os cromos mais no caderno e nos livros do que na própria caderneta, e assim ficava a olhar para eles.

Aquela mercearia de que nem me lembro já o nome era como um oásis no meio do deserto que caminhava todos os dias... faz parte de toda a memória que guardo agora da escola, de quando era pequeno. A mercearia já não existe, nem sequer o prédio onde estava. Agora um novo condomínio de cores berrantes e video-vigilância impera naquele espaço que foi, a tempos, um pouco meu. Já não compro cromos há anos; na verdade, nem lhes acho a mínima piada - os nomes dos jogadores e os lugares de onde vinham são-me agora familiares; até os visitei quase todos nos meus vôos constantes. Quanto aos chocolates, ainda os como, mas não com o mesmo prazer. Estes vêm em embalagens cuidadas, e são comprados em lojas de balcão de vidro e nome francês. Continuam bons, mas não têm o mesmo cheiro - o cheiro da mercearia que reconhecia a metros de distância.

Acho que já não existem muitas mercearias - foram substituídas por lojas dos 300 escudos (dos 1,5 euros), e por Shangri-lás e Hua-tás. Na verdade, acho que também já não existem muitos sonhos de criança - foram trocados por emoções de consola e por smiles de computador. Enfim...

R.

19 de agosto de 2005

A ritinha... ou como me lembro dela

Hoje, nem sei bem porquê, lembrei-me da Rita (da Ritinha, como lhe chamava...). A Rita era minha colega de escola, da altura em que ainda tentava fingir que gostava da cilindrada dos carros. Agora já me assumi totalmente: gosto de dança e teatro, não tenho a mínima paciência para a AutoMotor e usar fato-de-treino sem ser para praticar algum desporto (e mesmo aí...).

Mas voltando à Rita. Ela vivia muito perto dos meus avós, e fazia anos exactamente no mesmo dia que eu - era um ano mais velha. Já não me lembro o momento exacto em que a conheci, a minha memória tem-na como dado adquirido por mais que tente ir mais longe. Sei que foi no 5º ano (ou 1º ano do 2º ciclo do Ensino Básico, como se diz agora LOL). A Ritinha era alta, bem mais alta que eu. Tinha uns olhos grandes, umas faces sempre muito rosadas, e nas minhas memórias raramente a (re)vejo sem um gigantesco sorriso de orelha a orelha. E tinha um cabelo castanho e "à tigela" que brilhava como se de um espelho se tratasse. Durante muito tempo, achava que seria o mais perto de ter uma gémea :)

Tinha 10 anos. Sendo a casa dos meu avós "pouso central" da escolaridade desde a Escola Primária até ao 8º ano, e dada esta proximidade com a casa da Rita, acho que a também proximidade que se criou entre nós deverá ter advindo de sermos vizinhos. Eramos parceiros de caminho de ida e vinda da escola, e rapidamente nos tornámos parceiros em quase tudo o resto: intervalos, piadas e desatenções nas aulas, partidas a colegas... Até hoje, quando se fala de amigos a imagem da Rita é uma das imagens que mais facilmente me vem à cabeça. Acho até que a Ritinha é das grandes "culpadas" por desde há muito achar que as conversas homem-mulher (neste caso, miúdo-miúda) são bem mais interessantes que entre o próprio género. E nem teria a ver com a Rita ser maria-rapaz - não se preocupava muito com roupas e usava sempre calças, é verdade; mas não dispensava a reprovação intensa ao comportamento da maior parte dos rapazes, típica das raparigas da sua idade, e era tão sensível quanto qualquer outra colega de turma. Naquela idade, ter-se alguém para partilhar todos os segredos, participar em todas as brincadeiras, mas que ao mesmo tempo corasse quando se oferecia uma flor roubada do canteiro da escola, era o melhor que se poderia imaginar de amizade - agora, certamente ousaria chamar-lhe outra coisa. Naquela altura, tragava o almoço às pressas, porque desejava ir tocar-lhe à porta; mesmo que ela, depois, me fizesse esperar enquanto colocava os cadernos, livros e estojo na mochila. Talvez, suspeito, o fizesse com propositada vagarosidade para se fazer 'esperada'. Talvez na altura não o percebesse, mas quando se tem 10, 11 anos aceitamos que o mundo é cheio de mistérios, e que não faz mal não percebermos muita coisa - dedicamos as nossas energias ao momento presente.

Conheci a Ritinha 3 anos. Durante esse tempo acho hoje que vivi a minha primeira verdadeira paixão. Mas não o soube... ou então, na minha mente de pré-adolescente "categorizei" a Ritinha no grupo dos tão necessários amigos próximos. Só passado algum tempo, quando comecei a (des)entender algumas coisas do Amor, juntei as diversas memórias em que figura essa recordação tão querida, e vi que o sentimento seria diferente. Também entendi que a Rita me enviou por diversas vezes, talvez não nos primeiros tempos de convívio/amizade, mas depois, sinais que ela também via, para nós, algo mais que a amizade. Tenho até uma memória bem viva de um dia (não sei de que mês, e muito menos de que ano) em que a Rita transformou o seu enorme sorriso de alegria num bem mais trémulo de nervosismo. Queria falar de um assunto importante e fazer uma pergunta, afastando-me da restante pandilha. Quem sabe se no seu crescimento bem mais rápido para mulher que eu para pequeno adolescente, ela percebeu antes o que sentia (sentíamos) um pelo outro. Nunca o disse; não sei se desistiu à última, ou se eu terei inconscientemente arranjada uma forma de gorar a situação. É curioso... embora não saiba quando isto se passou, a minha mente "catalogou" esta memória como o definitivo adeus entre nós. Tudo o resto parece esfumar-se. Lembro-me de mudarmos de escola. A Rita foi para outra diferente. Lembro-me de um dia (meses talvez) reparar na porta do prédio aberta. Na porta da casa aberta. Na casa vazia. Não me lembro de ver a Rita partir. Estou quase certo que não a vi partir. Lembro-me de fechar este capítulo da minha vida. Lembro-me de namoradas (conscientemente assumidas). Mais tarde, lembro-me de reabrir definitivamente este capítulo.

Todos tomamos como certo que a amizade não tem idade - a cooperação, a fidelidade, a interdependência são ensinadas às crianças como bens essenciais. Com a Rita aprendi, se bem que muitos anos mais tarde, que também o amor verdadeiro não escolhe altura para aparecer.

Hoje, nem sei bem porquê, lembrei-me da Rita (da Ritinha, como lhe chamava...). Por mais incrível que possa parecer, agora sinto saudades tuas...

R.


P.S. para ti, onde quer que estejas