25 de janeiro de 2008

Carta perdida

Uma carta perdida. Depois de uma noite em que ganhámos um novo mundo. Em que nos demos. E recebemos um do outro a maior dádiva. O calor de um corpo. Quis agradecer-te. Quis sangrar para o papel todas as marcas que deixaste em mim. E aquelas que criei a partir da tua memória. Mas a escrita falhou. Caderno perdido por entre os grãos de areia em que vimos as estrelas. E, assim, a carta não chegará ao seu destino.

Tento lembrar-me do que ficou por dizer. Preso numa carta que falhou o seu propósito. Tento recuperar da minha memória as palavras perdidas do texto. Lembro-me que queria dizer-te que o meu corpo tem andado num combate. E que quis esfregar os olhos para que as tuas imagens pudessem ser guardadas nas minhas mãos. E depois aconchegadas junto das minhas memórias mais ternas. Mas que os olhos recusam-se a partilhar a nossa ilha. E o resto do corpo ficou com inveja. A alma tem perdido o seu rumo, normalmente seguro... Tem bamboleado daqui para ali - como se estivesse agora presa numa nuvem. Queria dizer-te que sei agora que as nossas almas viajaram até lugares longínquos - deixando os corpos "presos" num qualquer banco enterrado na areia da praia. Queria dizer-te que os corpos, depois, se quiseram vingar - partilhando toques, calores e tremores. Trocámos o calor de um pelo frio do outro. Como trocámos de asas... e de mãos, de boca e de braços. E que os olhos, que a tudo assistiram, ganharam um brilho que me tem ofuscado. As asas, volta-e-meia, batem desenfreadamente - tem sido trabalhoso acalmá-las. Assim, alma e corpo estão em combate, cada um reclamando para si o prémio - a ilha.

Na carta que se perdeu para sempre estava registado esse vôo a terras distantes que me nublou a vista. O vôo que me desligou do mundo em redor. Pensando bem, só agora recordo a luz que nos ofuscou algumas horas, ou as vozes que nos foram interrompendo... Lembro-me de ter dormitado no caminho de volta - desculpa, não consegui evitar. Talvez o meu corpo quisesse guardar com um sono reparador as sensações vividas. Enquanto que a alma batalhava para fazer as horas pararem. Finalmente, queria ter-te dito que tive pena de limpar do chão da minha casa a areia que a roupa e o corpo quiseram roubar da "nossa" praia - talvez como lembrança.

Espera, lembro-me agora. O caderno onde apontei tudo o que te queria dizer não foi perdido. Foi sim oferecido num impulso ao sorriso terno que me acompanhou nesta viagem. Por isso, todas estas palavras - todas estas sensações - tudo isto que julgava inevitavelmente perdido, estará aí nessa capa preta e folhas. Está a carta que queria ter-te enviado. E estão as outras cartas que escrevi - e as folhas brancas onde faltam as memórias ainda por viver. Ofereço-te essas folhas brancas. Deixa também tu sangrar para o papel as marcas da alma. Pode ser que um dia decidas perder o caderno (de volta).

R.

4 comentários:

c. disse...

Olho as páginas amareladas pela passagem do tempo onde navegam emaranhados de letras que revelam aquilo que foi. Foram essas correntes de palavras que me trouxeram até aqui...nem sei bem como. procuro nas entrelinhas aquilo que as palavras não revelam mas acabo por centrar a minha atenção nas páginas em branco. são essas que mais dispertam a minha curiosidade por agora...as linhas por preencher. lamento, mas não poderei deixar estas páginas que me ofereceste vazias e terei de as pintar com todas as cores que conheço (como uma criança a quem entregamos uma folha em branco e uns lápis de cera)para que um dia, quando o caderno for novamente perdido, te devolva as imagens que cosntruimos. juntos.

angel_of _dust disse...

sim, centra-te nas páginas em branco. no que está ainda por vir. tudo o que ficou para trás - o bom e o mau - são memórias que dão alento, mas nas quais já não podemos mexer.

pinta das cores do arco-íris essas páginas por ocupar. um dia, se perderes o teu caderno, gostarei de ver essas cores. e, nesse dia, serão também um pouco minhas.

c. disse...

As páginas já preenchidas são como mapas que nos permitem visualizar os testes que fomos fazendo com os lápis que possuíamos. com o passar do tempo vamos dispondo de mais cores que nos permitem voltar a desenhar figuras tão bonitas como as que ficaram para trás...mas com mais cor. um dia esse MEU caderno voltará certamente a ser teu mas terá novas tonalidades que não poderias descobrir sozinho ;)

angel_of _dust disse...

cores. realmente, poucoas vezes penso em cores. penso sempre a cinzento - misturando diversas tonalidades de preto e de branco. é certo que o vermelho das minhas asas está sempre presente. mas prefiro guardá-lo para mim. deixar que essa cor seja apenas minha. é o meu segredo.

se um dia esse caderno voltar ao ponto de partida, mais colorido e com histórias vividas em noites à beira-mar... aí irei tomá-lo como uma dádiva. como se tivesse percorrido o mundo e me chegasse agora com os cheiros, imagens e letras desses países longínquos.

... acho que irei gostar.