14 de agosto de 2016

Regresso. ou como se começa a limpar a poeira.

Quis voltar - ou melhor, quero voltar. Tenho de. Vou. Não quero mapas de viagens para decorar as minhas paredes. Dei por mim com a casa cheia de quadros e poucas janelas. Com tantas lâmpadas e pouca luz. Arranquei as imagens das paredes, parti os vidros, espalhei pelo chão. Como se um puzzle precisasse agora de ser resolvido, ordenado - dado lógica. Nunca soube desenhar com os dedos - apenas com os olhos. E por isso escrevo, tento rever as viagens-interiores que me guiaram pela noite dentro. E como voltar a elas, remendar as estradas e tirar todos os sinais de proibido. Percebo que o primeiro passo é voltar a conseguir “viajar”. E assim, tenho de (re)aprender - ou simplesmente lembrar - como se voa mesmo quando não se sai do lugar. Primeiro. Para que possa sair sem hesitações. Depois. Agarrado às vontades e alimentado pelas necessidades. De voltar a saborear o sal do mar. Sentir o orvalho das montanhas de magia. Mergulhar em mares de cabelos-cor-de-ocre. Juntar azul ao meu vermelho.

Nesta ânsia de querer e ser mais, esta estrela-guia que me decido a recuperar, começo por abanar as costas. A esperança que as minhas asas ainda estejam onde as plantei há muitas noites. Que ainda sinta a coceira de quando me preparava para as abrir e enfrentar as poeiras que os dias deixavam e as noites alimentavam. Talvez essas asas não tenham sido engolidas pelo tempo, estejam apenas destreinadas. E, enfrentando a minha preguiça, baste eu me esforçar e logo o seu vermelho-ilusão volte a pulsar. E eu volte a conseguir voar. Como antes. É certo que alguns movimentos ainda doem, parecem presos. Mas começo a vislumbrar a sombra destes apêndices-de-mim projectada nas paredes. Ainda com algumas penas em falta, outras quebradas ou com pouca cor. O sangue a alimentar os seus movimentos. E, nem que seja por breves segundos, sinto os meus pés largarem o chão. E o corpo a tornar-se leve. E o verde dos meus olhos brilhar mais. Um breve sorriso rasga-me a boca. Diversas vezes temi que o anjo tivesse partido de vez, buscando outro corpo que melhor o albergasse. E que este homem já não conseguisse encher o peito de ilusões e mergulhar de olhos fechados. Seria um duro revés. Mas ainda sei voar. Talvez tenha querido tão pouco durante tanto tempo. E agora, que toda a minha vontade está aqui, volte a sentir… sentir-me eu. Asas abertas, de um vermelho ainda rosado, mas abertas. Descalço-me e deixo que o corpo comece a vaguear. Primeiro entre as quatro paredes. Mas logo a janela se abre e a noite acolhe-me. Em frente, as casas da cidade-que-nunca dorme estão onde sempre estiveram. Algumas luzes acesas. Um ou outro transeunte nas ruas. Num vôo ainda rasante sento-me no parapeito da varanda. Inspiro fundo e fecho os olhos. E começo a voltar… a imaginar-me a voltar.

No caminho de volta, percebo que deixei tanta coisa espalhada em quartos e salas agora empoeiradas. Nunca cheguei a fechar as imagens e os sons e os sabores em caixas, em claro sinal de efectiva e (talvez) definitiva partida. Não. As memórias e as cicatrizes encontram-se por todo o lado, em harmonioso caos. Como sempre tivesse sabido que o regresso, para além desejado, era inevitável. Esqueço-me que fui eu que me deixei “estar”, que me deixei levar pela rotina pendular dos dias. Já fiz a via sacra de tudo em que fui menos-eu. E nessas salas empoeiradas não há espaço para ressentimentos ou desculpas. Todas as pedras da estrada fazem parte do caminho. Aquele que me trouxe aqui - com todos os sorrisos, mas também com todas as quedas e ausências. Porque sou eu que aqui chego e não uma imagem perfeitamente inventada - e imperfeitamente vivida. E o homem-que-nem-sempre-sabe-ser-anjo começa, aos poucos, a recuperar cada imagem, cada ilusão. Limpo a poeira com o meu corpo… talvez para que fique em mim a marca do tempo que deixei passar. Para que não em esqueça que mesmo as ilusões exigem de nós o esforço de as alimentar. Para que não se evaporem tão subitamente como surgiram. As divisões desta casa em que habito-dentro-de-mim vão ganhando cor. Um vermelho cada vez mais vivo… mas também verde como os olhos que se partilham… e azul como outras asas que por aqui viajam. Sento-me a um canto deste quarto. Bocados de estórias e de aventuras desenham jornadas já começadas mas que poderão ir bem mais além. Postais de terras distantes e cafés que aquecem a alma juntam-se a tantos outros artefactos: os que podemos agarrar com as mãos, mas principalmente as memórias de sal-e-areia, os arrepios de montanhas, as noites aos relentos nos lugares do sul. Rapidamente me levanto e tudo espalho, para que nunca as tenha por garantidas - que este quarto nunca seja um museu, mas sim uma porta-sempre-aberta-e-viva para tudo o que nunca deixou de existir e esperar por mim.

Abro os olhos. A rua ainda aqui está, mas eu não lhe ligo. Nos meus olhos, ainda estou “lá”. Janelas abertas, poeira a desvanecer-se. E eu, anjo-homem, de asas abertas. Sabendo que não ter os pés bem assentes no chão é (afinal) a chave para que tudo possa acontecer.

R.

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