20 de março de 2023

Como se fosse um espelho

quem te mandou oferecer um caderno sem linhas?

Como se fosse um espelho. Daqueles espelhos antigos que antes adornavam uma qualquer divisão da casa. Onde nos demorávamos a preparar para sair, a (re)ver as mudanças do corpo, a constatar que estávamos (efectivamente) a mudar - ou então que tudo estava igual ao ontem, ao antes, ao que pensávamos não conseguir mudar. Como se fosse um espelho. Que, por incúria ou decisão inconsciente, tinhamos tapado e guardado num sotão - esse lugar das memórias arrumadas. Memórias que julgávamos resolvidas e encerradas. Ou que, num momento de abandono, haviamos aceite que nunca ficariam resolvidas. E, por isso, esconderamos debaixo de cobertores velhos - na verdade, não são mais que as rotinas a embalarem-nos com os seus afazeres.

Um espelho largado. Há muito que o seu reflexo estava baço e encardido. Nós avançámos. Já não fazia falta esse espelho para o pendular ritmo dos nossos dias. É isso. Não olhávamos mais para nós. Não parávamos. O olhar em frente - os pés em movimento. Porque andar sem parar cansa bem menos que estar quieto. E pensar. E sentir. E respirar fundo... bem fundo. E cansa menos - mas mesmo muito menos - que olhar para nós e ver como o nosso corpo mudou - como a nossa alma sossegou - como a nossa ilusão se aquietou e domesticou. De espelho tapado, não nos regressa a urgência de querer mais. O que vamos tendo é quanto baste. Uns dias seguirem-se aos anteriores contenta-nos. Hesitarmos pouco ajuda a não tropeçar. Em nós. No peso que o corpo dormente tem. E que, com o espelho esquecido, realmente pesa bem menos. Achamos nós...

Como um espelho. Que estava (está) guardado. Quase esquecido. Quase... Porque vamos sentindo - aqui ou ali - um vislumbre do seu reflexo. Como se o Sol teimasse em nunca nos deixar esquecer que um dia ou uma noite, num passado que já nem sabemos quando aconteceu, era esse mesmo espelho que alimentava o que de melhor tinhamos para dar - a nós e aos outros. A chama que nos aquecia o instinto. Um espelho que nos mostrava todas as cicatrizes - e nos ensinava que elas eram na verdade ilhas e aldeias de um país-nosso. Um espelho que desenhava todas as nossas curvas - estradas, vales e montanhas de uma viagem levando-nos para um destino incerto. Mas que não conseguiamos resistir a (incessantemnete) desejar. Porque o mundo-lá-fora era incomensuravelmente menos apelativo que o universo-cá-de-dentro. In/co/men/su/ra/vel/men/te: dois mundos que não podem ser medidos ou comparados. Mas que nós sabíamos - oh, se sabíamos - qual nos alimentava mais. Qual nos fazia vibrar a emoção, tremer o corpo... quase transbordar. Qual nos dava calor e tirava o ar.

Como um espelho. Que mesmo descuidado, ainda estava lá. À espera de nós. Do regresso inevitável. Com esforço, tentámos evitar - mas será que tentámos com força e crença suficientes? Fugimos quando pareceu mais fácil desenhar dentro das linhas do caderno. Mesmo sabendo que nunca fomos bons a artes visuais e a nossa caneta "pede" que nos desviemos para a margem. E mesmo optando - ou não tendo outra hipótese - pelo ofício dos dias sempre iguais, a vaga lembrança do espelho é também a ténue esperança de que (ainda) estamos vivos. Que mesmo nas horas em que cumprimos com o que nos pedem ou impõem, existem segundos em que ansiamos. E volta o desejo de arriscar. De ser mais que o que fazemos, o que conseguimos, quem agradamos ou obedecemos. O desejo de fechar os olhos, abrir os braços e abraçar o que a nossa ilusão sussurra ao ouvido. Deixarmo-nos levar, não pelas contas que temos de pagar, não pelas roupas que temos de lavar, não pelos compromissos que aceitamos sem pensar... não, esquecer tudo isso - nem que seja por breves momentos. Esquecer o nome e a idade, a morada e a ordem de trabalhos que nos chega em emails. Sermos nós, apenas nós. Com as cicatrizes que são aldeias, as rugas que são cidades, as curvas do nosso corpo que são o mapa de uma peregrinação: a rota aos lugares sagrados da nossa emoção. Quando sorrimos, com quem sorrimos, quem nos rouba toda a oratória - que sempre foi o melhor refúgio para não nos sentirmos nús. Fechar os olhos e arriscar. Queimar o livro de normas que um dia alguém escreveu. E que teimamos em sempre cumprir de forma religiosa - como um coro mal ensaiado, mas que, mesmo assim, insiste em comparecer. Quer dizer - queimar não. Sabemos que a ilusão não consegue ser suficiente para cumprir com tudo o que temos de cumprir. [Verbo feio este: cumprir.] Sim, mesmo não podendo queimar todas as regras e condutas que esperam de nós, pelo menos guardar no fundo da mala. Viajar com toda a ilusão em cima, e as normas em espera. Será possível?

Como se fosse um espelho. Que recuperamos afinal do fundo do entulho. Está sujo e gasto da falta de uso e carinho. Porque há muito que a ânsia de olhar o nosso reflexo estava adormecida. Parece que não nos queriamos ver. Não ousávamos questionar. Andámos, caminhámos, corremos. Sempre em frente. Porque é assim que se faz - foi o que nos disseram. E foi isso que fizemos - (talvez até) bem demais. Mesmo sem direito a medalha, continuámos a escolher o conforto de escrever dentro das linhas do caderno. Que nos vai confortando - mesmo que nunca nos sacie de verdade. Mas o espelho está lá. Basta procurar bem e vasculhar cá dentro. E quando, no fundo da nossa ilusão, pensamos em o recuperar... essa ideia invade cada silêncio na madrugada, cada respirar fundo, cada vez que um sorriso (aquele sorriso!) nos tira do sério. Destreinados na arte de nos olharmos mesmo - cá para dentro de nós - vamos hesitando. Porque sabemos que a sede pede água, e a fome de voar cria asas. Torna-se difícil ignorar a comichão nas costas e os pés a fugirem do chão. Mesmo perdidos - é mais certa essa rotina que se repete e apenas nos exige que a sigamos - mesmo perdidos, não conseguimos riscar do pensamento: e se?... E se eu limpar o espelho? E se eu olhar o reflexo de frente? E se eu fechar os olhos e me deixar ir?... E SE?

E se um espelho (que até pensávamos perdido) estivesse aqui. Neste momento. E nós, que sempre temos tanta coisa para dizer, ficássemos calados - por não saber o que dizer - ou por ter tanto para contar e partilhar. Mas as palavras ficam sem voz. Querem sair mas não sabem como. Se calhar, nem sabemos mesmo que palavras são. E se houvesse um caderno. Sem linhas para seguir. Nem páginas numeradas. Nem ordem de trabalhos para aceitar provisoriamente e respeitar de forma cega. Sem tempo contado nem objectivos para cumprir. Sem voz a falhar. Apenas páginas brancas - à espera. E se as palavras presas na garganta tivessem terreno fértil na tinta da caneta. Ganhassem raízes e ali ficassem. E se houvesse um caderno que era um espelho, era uma aldeia, uma cidade, um universo? Um início de peregrinação a lugares sagrados que afinal estavam aqui - no nosso corpo e ou em outro tão perto de nós - e só agora são descobertos? E se... E se a pergunta fosse apenas uma porta a ficar entreaberta?

R.

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