quem te mandou oferecer um caderno sem linhas?
Como se fosse um espelho. Daqueles espelhos antigos que antes adornavam uma qualquer divisão da casa. Onde nos demorávamos a preparar para sair, a (re)ver as mudanças do corpo, a constatar que estávamos (efectivamente) a mudar - ou então que tudo estava igual ao ontem, ao antes, ao que pensávamos não conseguir mudar. Como se fosse um espelho. Que, por incúria ou decisão inconsciente, tinhamos tapado e guardado num sotão - esse lugar das memórias arrumadas. Memórias que julgávamos resolvidas e encerradas. Ou que, num momento de abandono, haviamos aceite que nunca ficariam resolvidas. E, por isso, esconderamos debaixo de cobertores velhos - na verdade, não são mais que as rotinas a embalarem-nos com os seus afazeres.
Um espelho largado. Há muito que o seu reflexo estava baço e encardido. Nós avançámos. Já não fazia falta esse espelho para o pendular ritmo dos nossos dias. É isso. Não olhávamos mais para nós. Não parávamos. O olhar em frente - os pés em movimento. Porque andar sem parar cansa bem menos que estar quieto. E pensar. E sentir. E respirar fundo... bem fundo. E cansa menos - mas mesmo muito menos - que olhar para nós e ver como o nosso corpo mudou - como a nossa alma sossegou - como a nossa ilusão se aquietou e domesticou. De espelho tapado, não nos regressa a urgência de querer mais. O que vamos tendo é quanto baste. Uns dias seguirem-se aos anteriores contenta-nos. Hesitarmos pouco ajuda a não tropeçar. Em nós. No peso que o corpo dormente tem. E que, com o espelho esquecido, realmente pesa bem menos. Achamos nós...
Como um espelho. Que estava (está) guardado. Quase esquecido. Quase... Porque vamos sentindo - aqui ou ali - um vislumbre do seu reflexo. Como se o Sol teimasse em nunca nos deixar esquecer que um dia ou uma noite, num passado que já nem sabemos quando aconteceu, era esse mesmo espelho que alimentava o que de melhor tinhamos para dar - a nós e aos outros. A chama que nos aquecia o instinto. Um espelho que nos mostrava todas as cicatrizes - e nos ensinava que elas eram na verdade ilhas e aldeias de um país-nosso. Um espelho que desenhava todas as nossas curvas - estradas, vales e montanhas de uma viagem levando-nos para um destino incerto. Mas que não conseguiamos resistir a (incessantemnete) desejar. Porque o mundo-lá-fora era incomensuravelmente menos apelativo que o universo-cá-de-dentro. In/co/men/su/ra/vel/men/te: dois mundos que não podem ser medidos ou comparados. Mas que nós sabíamos - oh, se sabíamos - qual nos alimentava mais. Qual nos fazia vibrar a emoção, tremer o corpo... quase transbordar. Qual nos dava calor e tirava o ar.
Como um espelho. Que mesmo descuidado, ainda estava lá. À espera de nós. Do regresso inevitável. Com esforço, tentámos evitar - mas será que tentámos com força e crença suficientes? Fugimos quando pareceu mais fácil desenhar dentro das linhas do caderno. Mesmo sabendo que nunca fomos bons a artes visuais e a nossa caneta "pede" que nos desviemos para a margem. E mesmo optando - ou não tendo outra hipótese - pelo ofício dos dias sempre iguais, a vaga lembrança do espelho é também a ténue esperança de que (ainda) estamos vivos. Que mesmo nas horas em que cumprimos com o que nos pedem ou impõem, existem segundos em que ansiamos. E volta o desejo de arriscar. De ser mais que o que fazemos, o que conseguimos, quem agradamos ou obedecemos. O desejo de fechar os olhos, abrir os braços e abraçar o que a nossa ilusão sussurra ao ouvido. Deixarmo-nos levar, não pelas contas que temos de pagar, não pelas roupas que temos de lavar, não pelos compromissos que aceitamos sem pensar... não, esquecer tudo isso - nem que seja por breves momentos. Esquecer o nome e a idade, a morada e a ordem de trabalhos que nos chega em emails. Sermos nós, apenas nós. Com as cicatrizes que são aldeias, as rugas que são cidades, as curvas do nosso corpo que são o mapa de uma peregrinação: a rota aos lugares sagrados da nossa emoção. Quando sorrimos, com quem sorrimos, quem nos rouba toda a oratória - que sempre foi o melhor refúgio para não nos sentirmos nús. Fechar os olhos e arriscar. Queimar o livro de normas que um dia alguém escreveu. E que teimamos em sempre cumprir de forma religiosa - como um coro mal ensaiado, mas que, mesmo assim, insiste em comparecer. Quer dizer - queimar não. Sabemos que a ilusão não consegue ser suficiente para cumprir com tudo o que temos de cumprir. [Verbo feio este: cumprir.] Sim, mesmo não podendo queimar todas as regras e condutas que esperam de nós, pelo menos guardar no fundo da mala. Viajar com toda a ilusão em cima, e as normas em espera. Será possível?
Como se fosse um espelho. Que recuperamos afinal do fundo do entulho. Está sujo e gasto da falta de uso e carinho. Porque há muito que a ânsia de olhar o nosso reflexo estava adormecida. Parece que não nos queriamos ver. Não ousávamos questionar. Andámos, caminhámos, corremos. Sempre em frente. Porque é assim que se faz - foi o que nos disseram. E foi isso que fizemos - (talvez até) bem demais. Mesmo sem direito a medalha, continuámos a escolher o conforto de escrever dentro das linhas do caderno. Que nos vai confortando - mesmo que nunca nos sacie de verdade. Mas o espelho está lá. Basta procurar bem e vasculhar cá dentro. E quando, no fundo da nossa ilusão, pensamos em o recuperar... essa ideia invade cada silêncio na madrugada, cada respirar fundo, cada vez que um sorriso (aquele sorriso!) nos tira do sério. Destreinados na arte de nos olharmos mesmo - cá para dentro de nós - vamos hesitando. Porque sabemos que a sede pede água, e a fome de voar cria asas. Torna-se difícil ignorar a comichão nas costas e os pés a fugirem do chão. Mesmo perdidos - é mais certa essa rotina que se repete e apenas nos exige que a sigamos - mesmo perdidos, não conseguimos riscar do pensamento: e se?... E se eu limpar o espelho? E se eu olhar o reflexo de frente? E se eu fechar os olhos e me deixar ir?... E SE?
E se um espelho (que até pensávamos perdido) estivesse aqui. Neste momento. E nós, que sempre temos tanta coisa para dizer, ficássemos calados - por não saber o que dizer - ou por ter tanto para contar e partilhar. Mas as palavras ficam sem voz. Querem sair mas não sabem como. Se calhar, nem sabemos mesmo que palavras são. E se houvesse um caderno. Sem linhas para seguir. Nem páginas numeradas. Nem ordem de trabalhos para aceitar provisoriamente e respeitar de forma cega. Sem tempo contado nem objectivos para cumprir. Sem voz a falhar. Apenas páginas brancas - à espera. E se as palavras presas na garganta tivessem terreno fértil na tinta da caneta. Ganhassem raízes e ali ficassem. E se houvesse um caderno que era um espelho, era uma aldeia, uma cidade, um universo? Um início de peregrinação a lugares sagrados que afinal estavam aqui - no nosso corpo e ou em outro tão perto de nós - e só agora são descobertos? E se... E se a pergunta fosse apenas uma porta a ficar entreaberta?
R.
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