23 de janeiro de 2008

Um banco na areia

Esperei por ti. Não sei quanto tempo. Mas esperei por ti. Naquela noite. Ou mesmo antes. Mesmo sem saber que existias. Mesmo sem saber que te dizer, caso existisses. Ou o que fazer. Mesmo assim, é por ti que esperava, minha anjinha, naquela noite de estrelas no céu. Num muro junto à praia. E na ânsia de te ver. Te (re)conhecer. De olhar para ti. De tocar e saber-te verdadeira. Para assim acreditar que és mais que uma ilusão criada numa das minhas muitas noites de insónia. Desculpa a inquietação. Desculpa as palavras mal pronunciadas. Quase inaudíveis. Preparei mal o momento. Talvez nem o tenha pensado sequer. Preferi deixar o ímpeto guiar os meus passos e as minhas palavras. E ele acabou por se esconder no momento em que mais era necessário. Deixando a descoberto uma enorme insegurança que os anjos sentem quando em face de um seu igual.

Quis dizer logo o que sentia. Quis ver as tuas asas da côr do mar e do céu. Quis senti-las na minha mão - o seu peso, a sua forma, o seu cheiro. Queria também mostrar-te as minhas asas côr-de-sangue. Há já muito que te as tinha oferecido. Mas queria explicá-las. Torná-las definitivamente familiares para ti. As asas que esperava te guiassem até mim. Para que não te perdesses na jornada. Acabei por ser eu a perder-me. Mas não o suficiente para falhar ao encontro. Apenas tardar. Sabes, sem asas perco o ritmo. Não estou habituado a usar as minhas frágeis pernas de humano-a-fingir. As palavras certas - mas existirão palavras certas para apresentar uma alma? - não surgiam como desejava. Assumo que sou um anjo frágil. Mesmo que, por vezes, me finja de invencível. Mas não. A tua serenidade, que aprendi a amar, desarmou-me na hora. E surgi nú perante ti. Despido de qualquer força. E vulnerável à tua. Que me dominou. E que quis deixar dominar.

Disseste estar também à minha espera. Não criticaste o meu atraso. Quem tem toda uma vida pela frente - pelo menos, por algumas horas - pode esperar com serenidade. Foi o que fizeste. Não criticaste o meu cansaço. Vim a correr o mais rápido que pude para não faltar ao prometido. À hora definida. Ao local designado. E tu lá estavas. Finalmente, estavas na minha frente. De sorriso nos lábios. Não pude deixar de sorrir também. De praia em praia, de candeeiro em candeeiro, contámos tudo. Parecia que já te conhecia hà séculos. Parece que sempre estiveste aqui ao meu lado. Mostraste-me o sinal que tens por cima do olho direito. Marca de um choque frontal com uma estrela. Anjinha distraída. Mostrei-te as minhas mãos pequenas mas firmes. O teu cabelo da côr da seara. O meu de um negro profundo. O teu nariz atrevido. A minha barba (há quanto tempo a tenho? já nem sei...). E os olhos verdes. Os teus como os meus. Como espelhos uns dos outros. Foi nesses olhos que nos vimos um ao outro. Como realmente somos. As viagens a países próximos. Ou as longas jornadas ao nosso interior, para descobrir de que somos feitos. Guiámo-nos à vez. Por passeios molhados das ondas, iluminados por candeeiros âmbar e intermitentes carros a passar na rua em cima. Aqui e além, pescadores começavam a sua faina. Chegavam recém-acordados, enquanto nós fugíamos ao aconchego do leito. Passavam por nós como se nada fosse. Conseguimo-nos manter invisíveis. Numa ilha só nossa. Onde só havia lugar para dois. Não aceitando visitantes, muito menos mirones. E fomos ficando - lado a lado. Falando sobre todas as viagens feitas - e aquelas que estão ainda para vir. Fomos entranhando um no outro.

Mas quando as nossas almas se decidiram finalmente tocar, escassearam as palavras. Não soubemos o que dizer. E ficámos a olhar um para o outro. Sem dizer nada. Os anjos também se acanham, descobrimos nessa noite. E tiveram os nossos corpo de falar por nós. Substituímos o verbo por sangue, suor e saliva. Trocámos a conversa pelo toque. As nossas asas fundiram-se. O vermelho misturou-se com o azul. E também nós unimos as nossas almas num só corpo. Emaranhados pelas mãos. Pelos cabelos. Pelas pernas. Pela boca. Fomos um anjo maior. De asas translúcidas. E ficámos assim, num qualquer banco enterrado na areia, pés estendidos e corpos lado-a-lado. A ver o mundo a passar. A noite a avançar. A madrugada chegava. E as primeiras ameaças de manhã começaram a sentir-se. Os carros que rareavam são agora mais. Aos pescadores junta-se a multidão que começa na sua labuta diária. Os cheiros são outros. As horas passaram sem darmos por isso. E o sonho terá de ser suspenso... por agora.

Acordámos do sonho. Queríamos mais. Eu quero mais. Afinal toda a ansiedade de estar contigo não tinha sentido. Deveria ter sabido à partida que dois anjos sabem sempre a melhor forma de partilharem as suas almas. E nós soubemos.

R.

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