Certeza de que a rotina, embora não desejada, é sempre mais confortável nos dias difíceis. Que a ilusão de coisas diferentes em dias diferentes é uma possibilidade bem mais teórica que prática. E assumir que é melhor assim. Que é melhor desesperar com a normalidade irritante que sentir medo de um amanhã incerto. Ter um mapa à frente ajuda. Deambular pelas ruas é mais arriscado.
Assumir que, mesmo assim, em noites de insónia vêm à cabeça memórias de viagens por fazer. Memórias de desejos secretos. Memórias de extases não-sentidos. Vêm à memória paixões com estranhos. E conversas com amigos. Conversas onde se fala de tudo o que não se pode explicar. E que por isso é partilhado. Vêm à memória praias em noites de inverno. E o barulho do mar a embalar.
Tentar que essa ideia fuja. Nem noites mal dormidas podem abalar uma rotina conveniente. Um projecto seguro é mais fácil de executar. Os sonhos de evasão não podem ter lugar em dias de gente. Ser anjo é retórica. Usar sapatos e tomar banho é a verdade e obrigação. É bom saber com que contar. É bom não hesitar. É bom não perguntar. Fazer. Estar. Concretizar. Concluir. Acumular. É mais importante o verbo que o sujeito.
Assistir à nossa dúvida. Afinal que queremos? Afinal que desejamos?... Afinal quem somos? Questionar mais do que apenas perguntar. Exigir respostas. Exigir hipóteses. Exigir. A nós. Acreditar. Por nós. Agora. Se não, ainda desistimos. E quando desistirmos é para sempre. Não há retorno. Nas coisas importantes nunca há retorno. Só nas banais. Nas coisas importantes todas as decisões têm de ser radicais. E o importante pode ser plantar uma flor. E o banal comprar uma casa. Ou um carro. Ou uma vida. Agarrar cada decisão como um sopro de consciência.
Refilar connosco próprios. Tentar prender a ideia de querermos ser normais. Banais. Por haver retorno. Ter mais contas para pagar do que poesias para escrever. Ter é melhor do que querer. Existir mais do que sonhar. E convencermo-nos de que é assim - por que sim. Porque ser de outra forma não traz felicidade. E queremos felicidade da boa. Da instantânea. Da que dá menos trabalho. Da que não satisfaz totalmente, mas é confortável. E que dá para mostrar aos pais. E exibir aos amigos.
Insistir que a normalidade é também ela uma ilusão. A normalidade é construída por alguém que não nós. O impulso é preciso. Não reprimi-lo é fulcral. Viver a vida tem de ser mais do que sobreviver nela. Tem de ser... Não podemos nascer diferentes e querer morrer iguais. Não podemos pintar os olhos com sorrisos para esconder lágrimas de desilusão. Não podemos fazer lifting da alma como fazemos do corpo. Não. A alma é uma coisa séria. Porque raramente a regamos?
Negar tudo isto. Dizer que nunca quisemos castelos nas nuvens. Que acreditamos no sonho financiado pelo banco. No prazer a prestações. Com taxas baixas. Mas lucros residuais. Sussurrar que precisamos do televisor. E que temos livros a mais. Raramente abertos. Mas que ficam bem nas estantes. Que comprámos da mesma cor do sofá. Porque fica bem. Queremos ficar bem. Mais do que nos sentirmos bem.
Abrir a janela e voar. Cair no chão e chorar. Sangrar e gostar. Rir no silêncio. Beijar quem aceitar. Sem perguntas. Amar e ser amado. Sem nada para trás. Nem para frente. Sem estórias nem obrigações. Por uma noite. Por uma hora. Agora. Já. Por favor... Aceitas? Tira-me do sério. Há muito que ninguém o faz. Se calhar ninguém o fez. Dá-me um sinal. Vive comigo uma ilusão. Um impulso. Depois seguimos o nosso caminho. Ou ficamos juntos. Mas o sorriso dos lábios ninguém nos poderá tirar.
R.
10 comentários:
"Insistir que a normalidade é também ela uma ilusão. A normalidade é construída por alguém que não nós."
Todo o texto é muito bom, meu caro anjo. Mas esta frase... esta frase ressoa cá dentro com muita força... afinidades...
Abraço.
Sim, amigo nuno, muitas vezes escondemo-nos atrás de uma necessidade de ser "normal". mas nunca ninguém nos disse o que é isso. por isso, achamos que o melhor é copiar dos outros.
na escola éramos penalizados por copiar. porque será que agora nos dão prémios por isso? estranho...
tiraste-me do sério...
bj meu
...e tiras-me do sério também?
Absolutamente.....sem palavras, Angel.
Saio rendida....
Beijo
(e não te esqueças de alterar o meu link)
monikyta: tirei? espero que tenhas gostado... tirarei sempre que quiseres ;)
bj meu, a desejar feliz natal! :)
é deficil ser feliz quando vivemos apenas num mundo criado por nós.por isso é preciso estar atentos aos outros, muitas vezes apenas é opreciso um sorriso, uma palavra ou uma visita....obrigado por existires.JJ
jj: obrigado por essas palavras... e obrigado por te juntares a mim/nós nesta viagem. até já.
bj meu, a desejar boas saídas de 2007 e umas melhores entradas em 2008 :)
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