São tantas as coisas que queria ter-te dito hoje. Primeiro um tímido olá (mesmo que o quisesse de outra forma, acho que sim, seria tímido). Depois, iria certamente seguir-se uma pouco planeada conversa de circunstância que duraria até, finalmente, te pedir que me mostrasses as asas. Sim, preciso de as ver; há já muito que as imagino. Quero saber de que tom de azul são feitas. Quantas penas. Quantas feridas. Quantos remendos.
E mostrar-te as minhas asas também. Dizer-te que nem sempre foram vermelho-rubro. Houve um dia em que foram brancas, quando acreditei que algumas coisas na vida poderiam ser conseguidas sem surpresas ou desilusões. Nessa altura todos acreditavam que eu era realmente um anjo. Daqueles loiros, olhos e azuis e assexuados. Que só querem o bem de todos e não sentem inveja, luxúria ou desdém. Que decoram os altares, sem nunca questionar o que lá é dito. Mas eu tenho cabelo da côr da noite e olhos de um verde profundo. E nem sempre estou bem-disposto. O branco das asas foi-se sujando. Noutro tempo ficaram negras - não como a noite, pontuada por uma ou outra estrela. Não, um negro buraco sem fundo. As asas quiseram acompanhar a minha via sacra. Os dias não eram tão felizes, a alma fechava-se. O sol era agora de um amarelo esbatido, mortiço. Muitas penas caíram, e já não conseguia voar. E por algum tempo as asas foram guardadas em armário bafiento, junto com a capacidade de sonhar. Mas com o tempo fui percebendo que nunca seria capaz de seguir o meu rumo, se não desse às minhas asas uma nova oportunidade. Mas sendo mais ousado, mais exigente comigo e com os outros. Quero mais, muito mais. E asas foram abrindo. Quero tudo a que tenho direito. E as penas cicatrizaram. E quero aquilo que me negam, mas que exijo à mesma. E as asas forma adquirindo, a cada dia, uma tonalidade rosada. E com mais querer, mais desejar, mais sonhar - um dia asas brilharam, apresentando-se de vermelho vivo.
Queria falar-te deste mundo e de outros. De ilhas desertas onde ainda é possível a utopia - nem que seja por uma noite. E queria saber como escondes as asas debaixo de casacos e fatos. E dizer-te que já muita roupa rasguei à conta da impetuosidade das minhas asas, e a sua tendência para tentarem se mostrar nas alturas menos próprias.
Eram tantas as coisas que queria ter feito contigo - hoje. Ver-te as mãos e os braços. Conhecer-te os sinais da alma. Mostrar-te os meus. Sentar-me na areia contigo, e perceber o dia a entrar na noite que tanta companhia nos tem feito. Tentar descobrir estrelas, normalmente escondidas dos focos da cidades que nunca dorme. Ver as pessoas a recolherem a casa. E dizer-te ficamos mais um bocadinho. Oferecer-te um grão de areia cuidadosamente escolhido só para ti. E pedir-te que me retribuas com uma gota de água do mar. Escolhida por ti. Ouvir o barulho das ondas. Sentir o frio de inverno que, mesmo assim, não nos demove de assistir ao pôr-do-sol. E à noite que se avizinha. As luzes acendendo-se.
Queria dizer e fazer tudo isto. E mais. O que fosse. O que quiséssemos. Quando quiséssemos. Muito. Ou o apenas estar ali. Naquele lugar. Naquele momento. Mas a oportunidade foi adiada. A vontade não. Por vezes o que não controlamos toma conta de nós. E se não posso controlar a ilusão de querer estar aí - onde tu estás - também não posso dominar forças que, não conspirando de propósito para nos afastar, hoje o conseguiram. E, por isso, o momento foi adiado. Mas não faltará muito para o momento chegar. Não pode faltar muito. E até lá a ilusão mantém-se. Até já.
R.
P.S. escrito num corredor branco - e a perder um pôr-do-sol preparado só para mim
10 comentários:
Que a tua ilusão se torne realidade, Angel.
Até lá, é uma linda ilusão, feita de vontades e de queres plenos e dignos do Anjo que és.
Beijos.
fica descansado. a gota de água salgada que escolhi para ti está guardada num local seguro...até ao próximo pôr-do-sol.
PS:...e será preciso dizer que gostei das novas imagens da cidade?
É!
Há dias assim,
Em que súmula do que estava para acontecer,
É bem inferior ao que se realizou.
Mas...
A espera aumenta a vontade,
Não é? :)
Texto fantástico!
Um Abraço meu.
obrigado brain. realmente, muitas vezes a vida fica aquém das expectativas.
mas, neste caso, só queria o pôr-do-sol. não um qualquer. aquele em concreto, naquele dia, àquela hora... com aquela pessoa.
esteve quase. voltará a estar.
c: é, também gosto muito destas imagens que a cidade me transmite. dão-me paz.
também tenho o teu grão de areia guardado numa caixa bem sela. não o perderei. é para ti. até já ;)
Venho aqui saudar a "poeira" que precedeu a nossa. Não sabia. Agora há duas, mas a sua tem pergaminhos mais antigos. Continue
Na poeira dos dias, achei que tinha perdido as minhas asas: n sei se dentro do guarda-fato se abafadas pelas camisolas e casacos. Reencontrei-as agora, são cinza-prata, côr do equilibrio vs luminosidade..eu pelo menos, quero acreditar que sim.
bj meu
cristinags: visitei a poeira que têm deixado por aí... gostei. irei voltar
monikyta: as asas têm destas coisas. nem sempre notamos que estão lá.
às vezes, só quando a comichão nas costas começa a irritar é que notamos que algo cresce. e é estranho, às vezes mesmo incómodo. só pouco a pouco vamos equilibrando o corpo, e nos habituamos ao seu peso.
outras vezes, tentamos esconder as asas em guarda-fatos, caixas... malas. nem sempre somos compreendidos por preferirmos voar em vez de andar. e por isso, achamos melhor tirar as asas pôr pensos na ferida que a sua ausência provoca. não sai sangue dessas feridas; e assim vamos andando. não notamos que a nossa alma vai-se evaporando em contacto com o ar. e o sorriso vai-se desvanecendo.
ainda bem que as (re)descobriste. abre-las bem e deixa que o sol se reflita lá. o resultado é fantástico (cuidado é para não ofuscares ninguém LOL)
Gostei mesmo muito. talvez tenha sido o texto que mais gostei neste blog.
:)
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