17 de abril de 2023

Como se fosse um diário

Como se fosse um caderno. Melhor, um diário. Um diário de bordo de todas as viagens (ainda) por fazer. Um diário com muitas páginas vazias. Viagens e ilusões por desenhar. E sem linhas, para que a única bússola seja a vontade de ser: ser-mais. Quando seguramos um diário sem linhas nas mãos, é como segurar um baú do tesouro - cheio de histórias não contadas e emoções não expressas. Mas que, sabendo do seu inestimável valor, devemos guardar e preservar o melhor que pudermos. As páginas em branco chamam por nós, desafiando a que as povoemos com os nossos pensamentos mais profundos e as emoções mais cruas. Sim, as mais cruas, as que muitas vezes estrangulamos na garganta. Por medo, receio ou incerteza do que essas emoções podem significar… mais ainda, do que poderão provocar. Em nós - no nosso corpo e alma. E nos outros - naqueles que nos rodeiam. Olhamos para as páginas em branco e hesitamos. Será que devemos avançar e pegar na caneta? Que caminho estamos a começar? Mas não resistimos. Há algo sobre a ausência de linhas que faz cada página do diário parecer mais aberta, convidativa. Quase como se o caderno (que é um diário) murmurasse ao nosso ouvido: não te contenhas - deixa-te invadir pela ânsia e pelo coração que bate mais forte - sê TU no modo mais sincero.

Pegamos na caneta. À medida que retomamos finalmente o ofício da escrita, a caneta percorrendo a superfície lisa da página, nasce uma sensação de liberdade, um alívio de todas as emoções esquecidas (ou nascidas neste momento) e que, agora, fervilham dentro de nós. As palavras parecem fluir sem esforço, por não serem limitadas pelas restrições de linhas - que guiam, mas também comprimem. A tinta vai preenchendo cada página num frenesim de rabiscos e letras mal desenhadas - mas que rasgam a capa dura (não a do caderno) que usamos para cumprir os dias sempre iguais. Apesar do aparente caos das páginas, há uma sensação de ordem e beleza na forma como as palavras e as imagens que imaginamos se intercalam, formando uma tapeçaria de caminhos e possibilidades que dizem tanto - mesmo sem uma única palavra ser proferida pela boca.

Voltamos à primeira imagem: o caderno-diário sem linhas é como um espelho. Reflexo em que assumimos e confrontamos os nossos medos e desejos mais profundos, as nossas ilusões e sonhos. E as nossas paixões inesperadas. Pronto, está dito! E à medida que continuamos a escrever, a caneta impaciente a derramar a alma na página, lembramos que, às vezes, não são as palavras em si que importam, mas o acto de escrever, de dar voz ao que (ainda) não foi dito. E também ao que, possivelmente, nunca poderá ser expressado em voz alta. Porque não sabemos explicar, porque não devemos ousar, porque… porque… por tantas razões, convicções e convenções. Nossas e dos outros. Mas, e se este diário, sem linhas que nos restrinjam, for apenas o começo de algo? Se as palavras escritas servirem para mais do que apenas povoar páginas carentes de tinta? E se, no meio de rabiscos e imagens desenhadas em caos, surgisse um sinal de que as palavras afinal poderiam ser faladas em voz alta - e com um sorriso do outro lado para nos ouvir? Um sinal de que era hora de falar, de ser vulnerável e arriscar partilhar o turbilhão que temos cá dentro?

Às vezes, as palavras certas (quais são as palavras certas?) teimam em não aparecer. Parecem tentar fugir - e assim, ficamos indefesos na fronteira: entre o tanto que queremos dizer e o tão pouco que ousamos falar. Mas, e se o diário fosse um mapa? Um caminho para abrir a porta de tudo o que nasceu sem nos darmos conta - e que ainda não sabemos explicar. Neste diário, recente companheiro de insónias inesperadas, as palavras fluem livremente, sem julgamento ou censura, e podemos ousar ser honestos connosco mesmos… e talvez mesmo com quem possa nos ouvir - e saber que, enquanto escrevemos, esse alguém está presente. Ao nosso lado. Porque as frases e imagens com que a tinta vai tingindo as páginas - outrora vazias - são como uma conversa, quase uma confissão. Para alguém que não está aqui… ainda (ou nunca estará). A distância desaparece e quase sentimos. O calor e o toque. O cheiro e o sorriso. O bater mais rápido do coração. A porta entreaberta e alguém a entrar. A ficar - nem que seja apenas por momentos. Segundos que são horas e noites que são vidas. Onde podemos regressar quando nos sentimos sozinhos ou desorientados, e onde podemos encontrar conforto e clareza no meio das rotinas que nos confundem e os pêndulos que não nos deixam descansar. Mas, principalmente, onde afinal descobrimos que (sim!) há um espaço por habitar dentro de nós. Um espaço que não reconhecíamos (quem sabe, nem suspeitávamos existir). E que, mesmo sem procurarmos, ganhou forma e curvas e cheiros e imagens. Um espaço que ficou habitado.

E assim, o diário é um santuário. Do que poderá ser a primeira estação, não de uma via sacra, mas da peregrinação que o espelho nos fez descobrir. Será este caderno que nasceu de um espelho - e cresceu para um diário - afinal um convite? Um desafio à viagem com destino por traçar. Sem certezas que nos segurem, mas com vontades que nos chamem. Muitas páginas ainda vazias no caderno. Para povoar de palavras desordenadas por pensamentos - que nas páginas nascem e aí ficam guardados. Ou para desenhar viagens arriscadas por quem quer mais. Por quem sabe que existem outras vidas que aquelas que nos ensinam os livros de conduta. Que a nossa alma e o nosso corpo são híbridos: cumprem quando assim tem de o fazer, mas fecham os olhos e voam quando não é possível evitar.

R.

20 de março de 2023

Como se fosse um espelho

quem te mandou oferecer um caderno sem linhas?

Como se fosse um espelho. Daqueles espelhos antigos que antes adornavam uma qualquer divisão da casa. Onde nos demorávamos a preparar para sair, a (re)ver as mudanças do corpo, a constatar que estávamos (efectivamente) a mudar - ou então que tudo estava igual ao ontem, ao antes, ao que pensávamos não conseguir mudar. Como se fosse um espelho. Que, por incúria ou decisão inconsciente, tinhamos tapado e guardado num sotão - esse lugar das memórias arrumadas. Memórias que julgávamos resolvidas e encerradas. Ou que, num momento de abandono, haviamos aceite que nunca ficariam resolvidas. E, por isso, esconderamos debaixo de cobertores velhos - na verdade, não são mais que as rotinas a embalarem-nos com os seus afazeres.

Um espelho largado. Há muito que o seu reflexo estava baço e encardido. Nós avançámos. Já não fazia falta esse espelho para o pendular ritmo dos nossos dias. É isso. Não olhávamos mais para nós. Não parávamos. O olhar em frente - os pés em movimento. Porque andar sem parar cansa bem menos que estar quieto. E pensar. E sentir. E respirar fundo... bem fundo. E cansa menos - mas mesmo muito menos - que olhar para nós e ver como o nosso corpo mudou - como a nossa alma sossegou - como a nossa ilusão se aquietou e domesticou. De espelho tapado, não nos regressa a urgência de querer mais. O que vamos tendo é quanto baste. Uns dias seguirem-se aos anteriores contenta-nos. Hesitarmos pouco ajuda a não tropeçar. Em nós. No peso que o corpo dormente tem. E que, com o espelho esquecido, realmente pesa bem menos. Achamos nós...

Como um espelho. Que estava (está) guardado. Quase esquecido. Quase... Porque vamos sentindo - aqui ou ali - um vislumbre do seu reflexo. Como se o Sol teimasse em nunca nos deixar esquecer que um dia ou uma noite, num passado que já nem sabemos quando aconteceu, era esse mesmo espelho que alimentava o que de melhor tinhamos para dar - a nós e aos outros. A chama que nos aquecia o instinto. Um espelho que nos mostrava todas as cicatrizes - e nos ensinava que elas eram na verdade ilhas e aldeias de um país-nosso. Um espelho que desenhava todas as nossas curvas - estradas, vales e montanhas de uma viagem levando-nos para um destino incerto. Mas que não conseguiamos resistir a (incessantemnete) desejar. Porque o mundo-lá-fora era incomensuravelmente menos apelativo que o universo-cá-de-dentro. In/co/men/su/ra/vel/men/te: dois mundos que não podem ser medidos ou comparados. Mas que nós sabíamos - oh, se sabíamos - qual nos alimentava mais. Qual nos fazia vibrar a emoção, tremer o corpo... quase transbordar. Qual nos dava calor e tirava o ar.

Como um espelho. Que mesmo descuidado, ainda estava lá. À espera de nós. Do regresso inevitável. Com esforço, tentámos evitar - mas será que tentámos com força e crença suficientes? Fugimos quando pareceu mais fácil desenhar dentro das linhas do caderno. Mesmo sabendo que nunca fomos bons a artes visuais e a nossa caneta "pede" que nos desviemos para a margem. E mesmo optando - ou não tendo outra hipótese - pelo ofício dos dias sempre iguais, a vaga lembrança do espelho é também a ténue esperança de que (ainda) estamos vivos. Que mesmo nas horas em que cumprimos com o que nos pedem ou impõem, existem segundos em que ansiamos. E volta o desejo de arriscar. De ser mais que o que fazemos, o que conseguimos, quem agradamos ou obedecemos. O desejo de fechar os olhos, abrir os braços e abraçar o que a nossa ilusão sussurra ao ouvido. Deixarmo-nos levar, não pelas contas que temos de pagar, não pelas roupas que temos de lavar, não pelos compromissos que aceitamos sem pensar... não, esquecer tudo isso - nem que seja por breves momentos. Esquecer o nome e a idade, a morada e a ordem de trabalhos que nos chega em emails. Sermos nós, apenas nós. Com as cicatrizes que são aldeias, as rugas que são cidades, as curvas do nosso corpo que são o mapa de uma peregrinação: a rota aos lugares sagrados da nossa emoção. Quando sorrimos, com quem sorrimos, quem nos rouba toda a oratória - que sempre foi o melhor refúgio para não nos sentirmos nús. Fechar os olhos e arriscar. Queimar o livro de normas que um dia alguém escreveu. E que teimamos em sempre cumprir de forma religiosa - como um coro mal ensaiado, mas que, mesmo assim, insiste em comparecer. Quer dizer - queimar não. Sabemos que a ilusão não consegue ser suficiente para cumprir com tudo o que temos de cumprir. [Verbo feio este: cumprir.] Sim, mesmo não podendo queimar todas as regras e condutas que esperam de nós, pelo menos guardar no fundo da mala. Viajar com toda a ilusão em cima, e as normas em espera. Será possível?

Como se fosse um espelho. Que recuperamos afinal do fundo do entulho. Está sujo e gasto da falta de uso e carinho. Porque há muito que a ânsia de olhar o nosso reflexo estava adormecida. Parece que não nos queriamos ver. Não ousávamos questionar. Andámos, caminhámos, corremos. Sempre em frente. Porque é assim que se faz - foi o que nos disseram. E foi isso que fizemos - (talvez até) bem demais. Mesmo sem direito a medalha, continuámos a escolher o conforto de escrever dentro das linhas do caderno. Que nos vai confortando - mesmo que nunca nos sacie de verdade. Mas o espelho está lá. Basta procurar bem e vasculhar cá dentro. E quando, no fundo da nossa ilusão, pensamos em o recuperar... essa ideia invade cada silêncio na madrugada, cada respirar fundo, cada vez que um sorriso (aquele sorriso!) nos tira do sério. Destreinados na arte de nos olharmos mesmo - cá para dentro de nós - vamos hesitando. Porque sabemos que a sede pede água, e a fome de voar cria asas. Torna-se difícil ignorar a comichão nas costas e os pés a fugirem do chão. Mesmo perdidos - é mais certa essa rotina que se repete e apenas nos exige que a sigamos - mesmo perdidos, não conseguimos riscar do pensamento: e se?... E se eu limpar o espelho? E se eu olhar o reflexo de frente? E se eu fechar os olhos e me deixar ir?... E SE?

E se um espelho (que até pensávamos perdido) estivesse aqui. Neste momento. E nós, que sempre temos tanta coisa para dizer, ficássemos calados - por não saber o que dizer - ou por ter tanto para contar e partilhar. Mas as palavras ficam sem voz. Querem sair mas não sabem como. Se calhar, nem sabemos mesmo que palavras são. E se houvesse um caderno. Sem linhas para seguir. Nem páginas numeradas. Nem ordem de trabalhos para aceitar provisoriamente e respeitar de forma cega. Sem tempo contado nem objectivos para cumprir. Sem voz a falhar. Apenas páginas brancas - à espera. E se as palavras presas na garganta tivessem terreno fértil na tinta da caneta. Ganhassem raízes e ali ficassem. E se houvesse um caderno que era um espelho, era uma aldeia, uma cidade, um universo? Um início de peregrinação a lugares sagrados que afinal estavam aqui - no nosso corpo e ou em outro tão perto de nós - e só agora são descobertos? E se... E se a pergunta fosse apenas uma porta a ficar entreaberta?

R.

27 de agosto de 2018

As tarefas a cumprir

Porquê - pensou o anjo-disfarcçado-de-homem - a dificuldade em ser o que sempre apregoa? Como alimentar a ilusão sem ter uma âncora que lhe indique o porto e abrigo? As dúvidas de quem é mas também tem-de-ser exigiam que inventasse nova forma de guiar as suas asas pela poeira dos dias. 

Decidiu, então, que deveria ter um plano. Uma cábula que dele exigisse um cumprimento de todas as tarefas diárias e regulares. Que - onde o corpo habitava - teria de existir uma emoção a ser cultivada e bem-cuidada. E mesmo sem renegar a sua ilusão, com todas as incertezas e entusiasmos repentinos... mesmo sem negar o que dele fez um anjo (as dúvidas e os mapas desenhados num ápice). Mesmo sem deixar de ser ele, achou que não faria mal tentar nova abordagem. Mais científica... não, científica não - que poderia rapidamente ser artificial. Mais estruturada. Talvez isso.

Pegou numa folha. De rascunho, como tudo o que chama verdadeiramente seu. Uma folha já rabiscada, já povoada de outras ideias e vontades. Com grãos de areia a salpicar e borrões de tinta a pontuar, de quando o sangue das palavras é demasiado para que qualquer frase seja suficiente... e, por isso, apenas marcas e sujidades ficam na folha. Apenas inícios - muitos deles que nunca verão a sua concretização. Pegou numa folha já viajada e desenhou uma tabela. Imperfeita no seu traçado, de dimensões inexactas. Nunca foi bom desenhador - nunca foi bom em tanta coisa. Inventou títulos para enunciar a proposta. E assim surgiram as Tarefas a cumprir (para uma alma limpa). No topo de tudo, assim ficou escrito. Primeiro desvio à decisão de ser mais prático que errático: achou necessário um preâmbulo. Como se tentasse, desde logo, explicar o porquê desta vontade de ser mais... "enquadrado". E pouco importava se esta tabela de decisões e sua organização nunca fosse vista por mais alguém. Que estas palavras de introdução servissem a ele próprio como lembrança do porquê de encetar esta demanda. Para quando tremesse no seu ímpeto e duvidasse do propósito. Começou então por escrever (com sublinhados e tudo):
"Como se cuida do corpo, assim se deve cuidar da alma. Existem em número suficiente entendidos, especialistas ou generalistas, defensores dos benefícios de um tratamento atento das várias partes do corpo. E quase todos alertam que qualquer desses tratamentos apenas será eficaz se feito de forma rotinada. Hábitos de higiene, portanto.
Se a alma advém do corpo - pois é nele que reside - e será tão única como o corpo que lhe serve de lar, também esta deverá ser alvo de atenção. Tanto como a dentição ou o cabelo. Deverá ser alimentada em qualidade e quantidade como o sistema digestivo. E, não diferentemente do coração-músculo, será importante vigiar de perto o coração-emoção.
Tomar atenção ao corpo na procura de sinais de fadiga ou doença. Dar atenção à alma na busca de fadiga e desistência."
Durante largo tempo contemplou estas palavras. Se foram minutos, horas ou uma noite inteira não se recorda. Mas foi tempo suficiente para se convencer que era este um passo que necessitava dar - aprender a cuidar da sua alma. E mais importante: fazê-lo de forma regular. Olhou para a tabela já (imperfeitamente) desenhada e dividiu-a em diversas células. No topo de cada coluna escreveu números sucessivos: 1, 2, 3, 4, 5, ... Não sabia ainda se o cuidado exigia uma aplicação em todos os dias... ou se estava dependente de tempos que ainda não percebera. Mas soube que o próximo passo seria inventar (lembrar?) partes da sua alma em que pudesse repartir o trabalho. Decidiu que mais facilmente passaria da vontade ao acto se pudesse ligar as necessidades da sua alma ao corpo onde ela habita há muito. E assim fez - em cada linha enunciou o que achava dever ser cuidado. E para cada parte, anotou a lápis explicações para quando os propósitos não fossem tão claros.

Escreveu na primeira linha (com itálicos e tudo): Pensar numa coisa que se quer - cérebro. Mais do que algo que existe para ser completado, pensar em algo que se deseja. Concretizável ou não, que se deseja. Que se quer, mesmo sabendo das dificuldades (impossibilidades?). Sonhar sem amarras. Sem perguntas - muito menos exigindo respostas. Deixar que a alma queira - esperando que o corpo alcance. Ou não... mas continuar a querer. Ele queria muito querer.

Na segunda linha (rasurada e tudo): Saborear cada pormenor - boca, nariz e olhos. Guardar o paladar de cada circunstância. Aproveitar cada sorriso, cada gosto e cada aroma de tudo o que nos rodeia. Especialmente das pessoas que nos rodeiam. Deixar-nos seduzir pelo cheiro de alguém. Pelo gosto que adivinhamos - mesmo que não o provemos. E, se a oportunidade surgir, não deixar de cheirar de perto, de tragar o sabor dos lábios. Sim, era imperativo nunca sentir fome de ilusões.

Na terceira linha: Guardar MEMÓRIAS e desenhar momentos -  olhos. Sempre fora ávido de memórias - das vividas na pele, das inventadas pela imaginação. E, pensou, era importante que os olhos-da-alma tivessem um espaço central. Um espaço que conquistaram por direito nestes anos todos em que coleccionara estórias, feito viagens e fotografado com o sonho as mais bonitas pessoas e mais exóticos lugares. Mas estava destreinado. E, por isso, destacou uma palavra com letras bem maiores. Se tudo falhasse, restariam as memórias... e mais aventuras para contar.

Quarta linha: Agarrar as oportunidades -  pés e mãos. Talvez seja a tarefa mais difícil. Não poucas vezes sentira que não se esforçara o suficiente por prender a si tudo o que a vida lhe tinha colocado à frente. Também é verdade que a vida, nos seus caminhos muitas vezes exageradamente curvos, insistia em surpreendê-lo. E nem todos os momentos, as pessoas e as jornadas dependiam apenas de si. Particularmente as pessoas - era um anjo de paixões, mas um homem de noções. E, algumas vezes, tinha a noção que não bastavam braços e pernas próprias para agarrar quem o cativava. Por vezes, esses braços, esses corpos - mesmo as almas - passavam por perto mas sem se deter. Mas, mesmo assim,  havia que agarrar qualquer oportunidade de... o que fosse.

Quinta linha: Guardar e lembrar -  o interior. Para quê ver, saborear, tocar ou querer... se não soubermos guardar esses momentos e sensações cá-dentro? Por isso, tinha de regularmente relembrar algo, sentir novamente. Recordar-se de tudo o que o seu corpo alberga, de todas as marcas que nele são lugares de um mapa incompleto. Voltar a querer algo, talvez de forma diferente. Recuperar o sabor ou cheiro de um lugar ou de uma pessoa (que te-nos faz sentir especiais). Rever os pontos cardeais de cada viagem, recuperando as cores de cada caminho e de cada país-interior onde habitámos. E agarrar cá-dentro esta sensação de que tudo faz sentido, mesmo quedado não o fez. Que muito se percorreu, mas que tudo está por ainda por alcançar. E falta tanto para o fim.

Sexta (e última) linha: SENTIR, SENTIR SEMPRE -  coração. Aqui escreveu em letras bem capitais o que para ele sempre fora o mais importante: sentir. Esforçar-se, cada vez mais, para não cair na rotina e no cómodo que tanto incomoda. Cada pormenor, cada sensação - tomá-las para si. Apaixonar-se continuamente pelas ruas onde habita. Encher o peito de cores por cada sorriso que não se consegue deixar de amar. Ser surpreendido por novas pessoas e novas sensações - e nunca pensar sobre a certeza. Ser o que sempre quis (com itálico e tudo): um anjo sensível sob a capa de um homem.

Olhou para esta tabela. Respirou fundo. Depois de tanto pensar e organizar, chegou à conclusão que apenas tinha feito o mais fácil. Faltava Teria de começar a preencher - havia que começar a tratar desta alma. Respirou novamente. Fechou os olhos. Sorriu. E soube que um novo capitulo começara.

R.

23 de agosto de 2018

Hoje ouve o bater do coração.

Cala-te. Falas muito - dizes adorar os silêncios, mas as palavras sempre encontram em ti terreno fértil para florescerem. Pára e respira - não peças urgência à pressa e corrida ao corpo. Deixa-te ficar. Cala-te, já disse. Fecha os olhos. Tudo lá fora importa pouco. Aqui - neste instante imobilizado na noite. Aqui os verbos nada avançam e os adjectivos pouco explicam. Mesmo tu, com os teus dias cheios - tu com horas de chegada e partida, deves e haveres - tu estás a mais. A não ser que aceites não-estar... A não ser que regresses ao sentir-ser.

Hoje é tempo de parar. De escutar sem logo retorquires qualquer teoria. Aquelas que, sem esforço, sempre surgem dando ciência ao que é sensitivo. Ao que se afirma como inexplicável. É difícil, sim... incontrolável, também. E o nó na garganta e a palpitação no peito relembram-te a cada passo. Hoje ouve o bater do coração. Apenas isso - e já é tanto. Não peças explicações ao que ele apenas constata. Que bate e não tem previsão de compasso. Tenta sentir a sua melodia. A voz que te compele a fechar os olhos. A encheres a mente de viagens possíveis e horizontes desejáveis.

Hoje acredita que é possível. Que existe uma estrada no meio do silêncio dos montes. Que algures está um sorriso que te acolhe e te devolve o que nem sabias ter perdido. Nada digas. Nada penses. Tudo aceita. É infância e os jogos de faz-de-conta dizem-te que não há tempo nem idade. Que podes saltar à corda sem medo de cair. Que podes correr descalço e sentir que o mundo se molda nos pés. Hoje sente o que não dizes. Que podes ser surpreendido. E, hoje.. podes fingir que isso basta.

Quando a estrada quase deserta te oferece os sinais... Deixa que (pelo menos) hoje possas ouvir o bater do coração.

R.

2 de janeiro de 2017

Um sussurro na terceira letra.

Às vezes, basta um momento - num local - numa altura. Sem plano de acontecer. Não se esperar, não procurar. Estar incauto - e ser surpreendido. Se calhar, é assim que deve acontecer. As melhores cosias não pedem para chegar. Sem anúncio, entram e rapidamente se instalam em nós - dentro do nosso corpo - alimentando a nossa ilusão. De repente, algo parece ser-estar diferente. Por ouvir um breve sussurro a chamar-nos... ou assim nos parece. E que corta o silêncio ensurdecedor da casa vazia. Por vislumbrarmos uma luz... ainda difusa. Que, no meio de uma qualquer noite escura de inverno, rasga sombras nas paredes nuas - no nosso corpo cansado. Por sentirmos um ligeiro arrepio na pele... que faz tremer. Como uma impressão de vida que (re)nasce. Todo o corpo e ilusão sentem que esta noite não é igual a outras tantas que passaram. Porque a fadiga de tudo-o-que-precisamos-fazer é esquecida. O dia que foi longo, já a pedir-nos o reparador descanso, afinal não impera. Entramos no domínio da nocturna emoção. A cidade-que-nunca-dorme permanece lá fora, sempre igual. A vida do mundo não se desvia do seu curso. Hoje como ontem. E assim continuará. Mas aqui, onde estamos, numa casa vazia invadida pela noite reparadora, algo ficou subitamente diferente. Estranho. Um ligeiro formigueiro no peito ganha força. Cresce a olhos vistos - e a alma sentida. A chave-de-nós roda, abrindo o baú das sensações. E (re)acende-se o universo-cá-de-dentro. Assim, (aparentemente) do nada. Reflectido no espelho, um brilho nos olhos verdes - sim, afinal por debaixo da secura, existe ainda brilho a poder despontar. Como se algo - ou alguém - alimentasse uma vela... e finalmente voltássemos a ver. Não apenas olhar... ver.

Paramos. Às vezes, é preciso fazer uma pausa para respirar. Fazer contas de cabeça e obrigar o coração a abrandar o ritmo. Pelo menos tentar... por mais difícil que seja pôr freio à vontade que o instinto nos indica. Paramos e pensamos. Em tantas noites iguais, as janelas que nos separam do mundo foram fechadas - buscando o merecido repouso de lutas e caminhos que nem sempre levaram a portos seguros. Mas, às vezes, basta um momento. Uma noite em que a janela fica entreaberta, deixando apenas passar restos de neblina e frio da noite de inverno. E se sorte, destino, profecia - ou coincidência... - existem, numa noite-entreaberta-ao-mundo algo pode mudar. A noite pode ser interrompida por uma passagem. Por um vulto que decide cruzar a nossa "janela". Visita inesperada. Desconhecida. Sem sabermos nada, a voz ainda pouca força tem. As palavras de ocasião saem. Perguntas e respostas em sucessão. Apalpamos um terreno que, aparentemente, não conhecemos, mas que vamos sentindo como familiar. Parece estranho. A "janela" estar aberta - a noite trazer um vulto com o frio de inverno - não temermos a sua chegada - deixarmos entrar. E o estranho passa a estranhamente fácil - certo - bom. Muito bom. As novas palavras nascem com facilidade. As frases são ditas quase sem pensar. Mas sempre a sentir. melhor, a sentir cada vez mais. As imagens - escritas ou gravadas em fotografias fugazes - vão desenhando pontes que nos levam à outra margem do rio. E surgem também os silêncios. Não daqueles que adivinham a ausência. Estes são silêncios que trazem tranquilidade - que nos dizem que não existem palavras suficientes para dizer da calma, da serenidade... da vontade de saborear os momentos. Cada um - demoradamente - sem pressas. Na ânsia de querer mais; mas na certeza do tempo ser o certo para ir descobrindo o caminho rumo a uma nova paisagem. Um destino que ainda não clarificamos, mas que nos vai chamando com o seu canto irresistível. E, então, arriscamos. Avançamos. Ousamos... pensar menos, querer (bem) mais. Passo a passo. Etapa a etapa. Ainda sem sentir qualquer cansaço na viagem. Ainda à procura de como chegar lá... ao outro lado do rio. Sabendo que não há melhor estrada que aquela que desenhamos com o coração aberto e vontade cheia. Faróis de luz e sombras que levarão o corpo para onde ele é esperado.

Mesmo sabendo que tudo será descoberto a seu tempo, e que não são precisas premissas antes de partir - mesmo assim - há que nomear. Voltar às palavras, nem que seja para poder gravar na alma qual o nosso destino. Dar ao desejo de viajar uma meta palpável. Que pode até ser uma letra - tal como sempre quisemos reduzir o nosso próprio nome. Terceira letra do alfabeto. Quase redonda, como é a rotina de todos-os-dias - mas ainda aberta, como a vontade de abrir as asas e não ficarmos presos ao pendular passar das horas-sempre-iguais. Uma letra que diz, à partida, pouco - mas que (já) significa tanto.Que lida de fora, é apenas uma singular letra - perdida por não ser junta a outras, por não ser princípio nem meio nem fim de palavra. Mas que é bem mais que isso - quando vista de dentro. Porque diz de uma vontade, diz de um sorriso que fica rasgado no rosto e que, teimosamente, vai fazendo morada em nós. Na face e na caixa-em-forma-de-coração que nos habita o peito. Uma letra - uma imagem - um encontro... um início. Um princípio de vontade. Um meio de saber que, sim, é verdade que a janela estava aberta e por lá entrou novamente a ilusão. Um fim que não se conhece - mas que, agora, se deseja (tanto) saber. Não para fechar a porta, a janela... fecharmo-nos. Mas sim para encerrar todas as dúvidas da estranheza.  A incerteza - começar a aventura. Mas sim para colar palavras bonitas a essa letra. Imagens bonitas ao vulto que ousou entrar e pernoitar na casa vazia. Respirares e suspiros muito bonitos à vontade de tocar o que se lê.

Existiu existe um sussurro. Que traz a terceira letra. A letra que dá o mote para a palavra necessária: Começa.


R.