Como se fosse um caderno. Melhor, um diário. Um diário de bordo de todas as viagens (ainda) por fazer. Um diário com muitas páginas vazias. Viagens e ilusões por desenhar. E sem linhas, para que a única bússola seja a vontade de ser: ser-mais. Quando seguramos um diário sem linhas nas mãos, é como segurar um baú do tesouro - cheio de histórias não contadas e emoções não expressas. Mas que, sabendo do seu inestimável valor, devemos guardar e preservar o melhor que pudermos. As páginas em branco chamam por nós, desafiando a que as povoemos com os nossos pensamentos mais profundos e as emoções mais cruas. Sim, as mais cruas, as que muitas vezes estrangulamos na garganta. Por medo, receio ou incerteza do que essas emoções podem significar… mais ainda, do que poderão provocar. Em nós - no nosso corpo e alma. E nos outros - naqueles que nos rodeiam. Olhamos para as páginas em branco e hesitamos. Será que devemos avançar e pegar na caneta? Que caminho estamos a começar? Mas não resistimos. Há algo sobre a ausência de linhas que faz cada página do diário parecer mais aberta, convidativa. Quase como se o caderno (que é um diário) murmurasse ao nosso ouvido: não te contenhas - deixa-te invadir pela ânsia e pelo coração que bate mais forte - sê TU no modo mais sincero.
Pegamos na caneta. À medida que retomamos finalmente o ofício da escrita, a caneta percorrendo a superfície lisa da página, nasce uma sensação de liberdade, um alívio de todas as emoções esquecidas (ou nascidas neste momento) e que, agora, fervilham dentro de nós. As palavras parecem fluir sem esforço, por não serem limitadas pelas restrições de linhas - que guiam, mas também comprimem. A tinta vai preenchendo cada página num frenesim de rabiscos e letras mal desenhadas - mas que rasgam a capa dura (não a do caderno) que usamos para cumprir os dias sempre iguais. Apesar do aparente caos das páginas, há uma sensação de ordem e beleza na forma como as palavras e as imagens que imaginamos se intercalam, formando uma tapeçaria de caminhos e possibilidades que dizem tanto - mesmo sem uma única palavra ser proferida pela boca.
Voltamos à primeira imagem: o caderno-diário sem linhas é como um espelho. Reflexo em que assumimos e confrontamos os nossos medos e desejos mais profundos, as nossas ilusões e sonhos. E as nossas paixões inesperadas. Pronto, está dito! E à medida que continuamos a escrever, a caneta impaciente a derramar a alma na página, lembramos que, às vezes, não são as palavras em si que importam, mas o acto de escrever, de dar voz ao que (ainda) não foi dito. E também ao que, possivelmente, nunca poderá ser expressado em voz alta. Porque não sabemos explicar, porque não devemos ousar, porque… porque… por tantas razões, convicções e convenções. Nossas e dos outros. Mas, e se este diário, sem linhas que nos restrinjam, for apenas o começo de algo? Se as palavras escritas servirem para mais do que apenas povoar páginas carentes de tinta? E se, no meio de rabiscos e imagens desenhadas em caos, surgisse um sinal de que as palavras afinal poderiam ser faladas em voz alta - e com um sorriso do outro lado para nos ouvir? Um sinal de que era hora de falar, de ser vulnerável e arriscar partilhar o turbilhão que temos cá dentro?
Às vezes, as palavras certas (quais são as palavras certas?) teimam em não aparecer. Parecem tentar fugir - e assim, ficamos indefesos na fronteira: entre o tanto que queremos dizer e o tão pouco que ousamos falar. Mas, e se o diário fosse um mapa? Um caminho para abrir a porta de tudo o que nasceu sem nos darmos conta - e que ainda não sabemos explicar. Neste diário, recente companheiro de insónias inesperadas, as palavras fluem livremente, sem julgamento ou censura, e podemos ousar ser honestos connosco mesmos… e talvez mesmo com quem possa nos ouvir - e saber que, enquanto escrevemos, esse alguém está presente. Ao nosso lado. Porque as frases e imagens com que a tinta vai tingindo as páginas - outrora vazias - são como uma conversa, quase uma confissão. Para alguém que não está aqui… ainda (ou nunca estará). A distância desaparece e quase sentimos. O calor e o toque. O cheiro e o sorriso. O bater mais rápido do coração. A porta entreaberta e alguém a entrar. A ficar - nem que seja apenas por momentos. Segundos que são horas e noites que são vidas. Onde podemos regressar quando nos sentimos sozinhos ou desorientados, e onde podemos encontrar conforto e clareza no meio das rotinas que nos confundem e os pêndulos que não nos deixam descansar. Mas, principalmente, onde afinal descobrimos que (sim!) há um espaço por habitar dentro de nós. Um espaço que não reconhecíamos (quem sabe, nem suspeitávamos existir). E que, mesmo sem procurarmos, ganhou forma e curvas e cheiros e imagens. Um espaço que ficou habitado.
E assim, o diário é um santuário. Do que poderá ser a primeira estação, não de uma via sacra, mas da peregrinação que o espelho nos fez descobrir. Será este caderno que nasceu de um espelho - e cresceu para um diário - afinal um convite? Um desafio à viagem com destino por traçar. Sem certezas que nos segurem, mas com vontades que nos chamem. Muitas páginas ainda vazias no caderno. Para povoar de palavras desordenadas por pensamentos - que nas páginas nascem e aí ficam guardados. Ou para desenhar viagens arriscadas por quem quer mais. Por quem sabe que existem outras vidas que aquelas que nos ensinam os livros de conduta. Que a nossa alma e o nosso corpo são híbridos: cumprem quando assim tem de o fazer, mas fecham os olhos e voam quando não é possível evitar.
R.