26 de outubro de 2006

Estás aí?

(som do telefone)


- Estou?


- ...

- Estou sim? Quem fala?


- ... M? És tu?

- Sim, sou eu... Mas quem fala?

- É o R.

- R? Que se passa? Sabes que horas são? Aconteceu alguma coisa?

- Realmente é tarde... Desculpa estar a incomodar-te. Mas estava aqui sozinho, neste casarão que julguei do tamanho certo para as minhas ambições - e agora se revela exagerado para as minhas realidades. Acho que precisava de ouvir uma voz amiga.

- Apetece-te falar, é isso?

- Não... Apetece-me ouvir - ouvir vozes, passos, sons. Sentir cheiros. Ver vultos nestes corredores vazios de alma. Preciso de calor.

- Mas, de que queres que fale? A minha vida é banal, acho que passarias de isolado a entediado...

- Quero que me contes a tua noite, o que fizeste, com quem estiveste. Acho que preciso de um pouco de voyeurismo.

- (sorriso) Bem, foi uma noite como são todas, iguais sem novidade nem sobressaltos.

- É mesmo disso que estou a precisar - de uma alheia ilusão de banalidade.

- Deixa ver, então... Cheguei a casa à hora de sempre, vinda do emprego de sempre.

- Gostas do teu emprego?

- Se gosto? Não sei... Nem sequer sei se é suposto gostar ou deixar de gostar. É o meu emprego. É suposto gostar?

- De acordo, continua...

- A seguir, é sempre hora do banho dos filhos. Ninguém me explicou que a lembrança que ficará da infância dos meus filhos é a carga de trabalhos que tive com eles. Quer dizer, não me entendas mal, eu adoro-os, mas... mas... Enfim, falta cuidar do marido. Jantar na mesa, dever cumprido. Todos satisfeitos.

- Todos? Dever? Não prazer?

- ...

- ...

- Se não gostasse não estava aqui... não achas? Continuando, banho tomado, jantar comido, crianças a dormir. Gosto de ver aqueles concursos da TV e dizer «se fosse eu, não falhava uma! e o dinheiro fazia bem falta». Mas nunca concorro.

- E depois vais dormir, não é?

- Sim, claro. Uma ou outra noite de "amor combinado", uma cama por vezes partilhada... no outro dia, a rotina desde início.

(voz ao longe: «M, com quem estás a falar?»)

- Uhmm, tenho de ir. Ficas bem? Se quiseres, podemos falar mais um pouco.

- Não, obrigado. A minha casa está agora cheia. Vejo na minha frente crianças a brincar, ouço-lhes os passos apressados de quem tem ânsia de viver. O cheiro do jantar invade a sala. A minha cama está ainda quente de uma noite de amor (ou pelo menos de sexo). Ouço as vozes, sinto os cheiros. De repente, o casarão vazio é agora uma casa cheia de vida, rotinas e afectos. Além disso, a manhã está a raiar. De dia, qualquer dúvida ou ansiedade passa a ritmo e continuidade. Mas talvez te telefone mais logo...

- Sim, espero que telefones. Mas aí, quero que sejas tu a contar-me as tuas noites de álcool e solidão. Quero esvaziar a minha casa de certezas - para que se encha de sonhos e memórias de terras e amores distantes que nunca se irão concretizar. Hoje, fizeste-me sentir falta disso...

R.

3 comentários:

Nuno Guronsan disse...

E ainda me questionam por que razão costumo eu ser mais ouvinte que falante... Agora pelo menos posso pôr-lhes alguma coisa à frente que lhes explique porque é que sou assim... Obrigado, anjo, e só espero que este comentário te faça sentir menos solitário! Abraço.

angel_of _dust disse...

bom... quando estou a responder ao teu comentário às 2h14, é difícil fugir das evidências...

... mas atenta não só no solitário que busca um pouco de "normalidade", mas também naquela pessoa como tudo organizado que sente falta do sonho e expectativa

Nuno Guronsan disse...

Sim, sim, percebo-te perfeitamente... Há muito tempo que também não tenho um sonho ou uma expectativa que me acorde da (outra) "normalidade" do dia-a-dia...

Bons voos!