A minha vida em caixotes. Sempre que me dá para arrumar os artefactos que povoam as redondezas do meu leito, é a minha vida que está a ser arrumada. Cada papel, cada envelope, cada livro, cada disco ou cd – cada e um e cada qual é para mim memória de que tenho dificuldade em me despegar. Quando a (fraca) vontade ou a impossibilidade de coabitação com os restantes me obrigam a levar a cabo o empreendimento que comummente chamamos de arrumações, é a mim próprio que me arrumo, me (re)organizo.
Ao longo do tempo, vamos acumulando por preguiça ou afectividade pequenos resíduos de histórias e vivências. Um bilhete de metro não é só um bilhete de metro – é a lembrança daquele encontro, ao fim da tarde, numa qualquer esplanada à beira-rio. Um anúncio de emprego recortado de um qualquer jornal irreconhecível lembra-nos de quando decidimos que finalmente tínhamos de abandonar o calor da infância e enfrentar o "mundo lá fora". Um porta-chaves, uma caneca, viagens por nós feitas ou ofertas de viagens de outros. Postais – diários resumidos de memórias longínquas. De um lado, imagens que fingimos serem os nossos olhos a captar (embora estejam repetidas por tantos outros viajantes incógnitos). Do outro, aventuras ou meras descrições de lugares que passam a ser nossos. E fotografias, muitas fotografias. Muita da nossa vida é lembrada porque foi imortalizada em película. Os nascimentos e baptizados. As brincadeiras ainda em fraldas. As primeiras viagens de estudo (a libertação do jugo paternal, e primeiros sintomas de liberdade). Os primeiros amores. As memórias de quem passou por nós – alguns são meras faces da nossa história. As memórias de quem já partiu – mas, naquele breve momento de eternidade, estavam ali, ao nosso lado. Ainda hoje estão, mesmo que não em presença. Os amores mais recentes. Viagens rápidas. Demandas prolongadas. Dezenas, centenas, milhares de fotografias. Dezenas, centenas, milhares de anos mesmo de quem é novo e ainda tem muito para viver.
A minha vida em caixotes. Tanto para guardar cá dentro, e ainda só o primeiro armário…
(continua)R.
Ao longo do tempo, vamos acumulando por preguiça ou afectividade pequenos resíduos de histórias e vivências. Um bilhete de metro não é só um bilhete de metro – é a lembrança daquele encontro, ao fim da tarde, numa qualquer esplanada à beira-rio. Um anúncio de emprego recortado de um qualquer jornal irreconhecível lembra-nos de quando decidimos que finalmente tínhamos de abandonar o calor da infância e enfrentar o "mundo lá fora". Um porta-chaves, uma caneca, viagens por nós feitas ou ofertas de viagens de outros. Postais – diários resumidos de memórias longínquas. De um lado, imagens que fingimos serem os nossos olhos a captar (embora estejam repetidas por tantos outros viajantes incógnitos). Do outro, aventuras ou meras descrições de lugares que passam a ser nossos. E fotografias, muitas fotografias. Muita da nossa vida é lembrada porque foi imortalizada em película. Os nascimentos e baptizados. As brincadeiras ainda em fraldas. As primeiras viagens de estudo (a libertação do jugo paternal, e primeiros sintomas de liberdade). Os primeiros amores. As memórias de quem passou por nós – alguns são meras faces da nossa história. As memórias de quem já partiu – mas, naquele breve momento de eternidade, estavam ali, ao nosso lado. Ainda hoje estão, mesmo que não em presença. Os amores mais recentes. Viagens rápidas. Demandas prolongadas. Dezenas, centenas, milhares de fotografias. Dezenas, centenas, milhares de anos mesmo de quem é novo e ainda tem muito para viver.
A minha vida em caixotes. Tanto para guardar cá dentro, e ainda só o primeiro armário…
(continua)R.
6 comentários:
Também um dia tive necessidade de encaixotar a minha vida (curiosamente, esvaziando os armários que agoras calcorreias...) e dar o salto, em direcção a outras paragens.
Um abraço e "boa viagem"...
é curioso... será possível encaixotar uma vida?
é curioso... será possível, por falta de espaço, que uma parte da nossa vida possa ficar para trás?
... ou arrumada numa arrecadação, junto de caixas de electrodomésticos?
Ontem senti saudades tuas.
Puxei o portátil para cima da cama que há tantos dias me prende e fiquei a ler-me.
Fiquei a ler a pasta desarrumada de textos, faltavam-me os cadernos - o papel a pele que gosto de riscar.
Dei comigo a criar pastas e subpastas, a criar gavetas. Arrumei os textos e percebi que eram também de mim, as saudades que sentia...
E agora quando cheguei aqui e comecei a devorar tudo com a ânsia normal, tudo fez sentido.
"Tenho dores fechadas em caixinhas, contra aqui, contra ali, contra cá..." O'QueStrada
Mel
mel: não precisas de sentir saudades minhas - eu não fui nem vou embora... e as minhas asas continuam abertas para te acolher.
espero que a tua ânsia se transforme em vontade de partilhar comigo (e com quem quiseres) esses cadernos de pele e papel.
Se fosse fácil encaixotar e arrumar a nossa vida tal e qual como fazemos com objectos ou simples folhas de papel então para além de fácil a vida também perderia o sentido da desorganização emocional... Não é isto que faz de nós irracionais e emocionais simultaneamente?
sassita (benvinda de volta...): irracionais não sei - emocionais concerteza.
a nossa existência é marcada bem mais pelas "emocionalidades" que pelas certezas racionais. do conformismo e razão não ficam registos - fica sim os momentos em que ousámos.
mas estes caixotes, em parte físicos em parte emocionais, têm por força ser arrumados. se assim n acontecer, corro o risco de ficar parado, vendo a vida a passar. algumas coisas terão de ficar para trás, de forma a que outras ocupem a sua posição de destaque. embora seja sempre impossível esquecê-las...
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